Um
lado
O
sol na janela me acorda. O vento balança as cortinas transparentes.
De renda. Mania de Hotel barato tentando esconder o desconforto com
um pouco de luxo. Eles acham que disfarça o ambiente mal cuidado. E
a janela que não fecha direito. É cedo. Sete horas? Talvez menos.
Escolhi hoje ao meio dia. Queria dormir um pouco mais. Assim não
ficaria pensando. Não, não estou com medo. Quero apenas estar com a
cabeça livre. Limpa de pensamentos e lembranças.
Se
eu levantasse às onze como planejara, só teria tempo para um almoço
leve e de me concentrar no que ocorreria dali a uma hora. "Mente
desocupada é oficina do diabo." Ele me disse. Ele me disse
muitas coisas. "A décima marca é a mais importante. Mais
importante que a primeira. A primeira pode ser um zé-ninguém
qualquer. Como você hoje." Detestava quando ele me chamava de
zé-ninguém. Mas ele tinha razão. Quem seria eu até não ter posto
a décima marca em meu revólver? A primeira podia ser qualquer
coisa: "um velho bêbado, um índio desgarrado da tribo, um
jovem forasteiro tentando mostrar que é homem."
Foi
um bêbado arruaceiro. Servia. Depois do primeiro, "o medo de
matar teria ido. Só isso. Mas depois da décima, você conviverá
com a fama."
Nunca
ousei perguntar o que aconteceria com o medo de morrer.
Outro
lado
Não
comecei por quis. Era ele ou eu. E tem sido assim sempre. No começo
até fiquei orgulhoso. Ainda resta um pouco deste orgulho. Talvez ele
me mantenha vivo. Quantos eu matei, iludidos com a mesma fama que hoje
eu desfruto?
Antes
eu marcava. Uma ansiedade sem limites até conseguir a décima marca.
"O atestado de profissionalismo. É mais importante." Ou
foi. Hoje tanto faz. "E lembrar é uma fraqueza." Não
estou preocupado em ser forte ou fraco. Quero que apenas acabe logo.
Para mim ou para ele. Não faz mal eu lembrar. A décima marca foi
um caçador de recompensa. Famoso. Ele pegou muita gente perigosa.
Por dinheiro. E passou a gostar disso. Matar gente perigosa. Decidiu
fazer caçadas "preventivas". O dinheiro não importava
mais. E, em sua visão, eu era um criminoso. Só faltava o cartaz de
"procura-se".
Mereceu
a bala que o matou.
Um
lado
Meu
revolver só tem oito marcas. Foi tão fácil fazê-las, que achei
que poderia marcar um duelo com ele. No caminho acharia um idiota
qualquer para me desafiar e levar chumbo. Mas a notícia correu rápido.
Se eu estava pronto para enfrentá-lo, então quem teria coragem de
me desafiar? Ninguém iria conferir se eu poderia ou não...
Ainda
havia tempo para caçar uma briga e obter minha nona marca. A vítima
podia ser até uma puta. A qualidade não tinha muita importância.
Mas ainda é muito cedo para ter muita gente no bar. E não creio que
vá ninguém. O pessoal só vai por a cara pra fora alguns minutos
antes. Como sempre.
Alguém
bateu à porta. Não tenho amigos. Nem amantes. Então, quem seria?
Ah!
O padre! Há dias que ele vem tentando me segurar, fazer-me desistir
da vida que levo ou, pelo menos do duelo. É um dos que apostam
contra. Vou ouvi-lo mais uma vez e dispensá-lo.
Ela
Como
sempre ele vai mandar aquele garoto me chamar. Vai dar a ele
algumas moedas,
indicar a Casa da Madame e dar-lhe uma descrição minha (embora ele
já saiba, como todos na cidade), um tanto vaga. As outra meninas
gostam do jogo e quando o menino aparece, fingem que ele é um
cliente, oferecendo seu dotes, só para vê-lo ficar vermelho. Quando
saio com o garoto na rua, são os homens que o constrangem, fazendo
comentários obscenos sobre o que eu e o garoto faremos no hotel.
Quando o trajeto acaba, o menino ri e vai embora, deixando-me diante
da porta.
Sei
que está aberta, mas bato assim mesmo. Sei que não virá
resposta nenhuma,
mas continuo com o jogo. Se fosse outro, eu virava as costas e
ia
embora.
Mas com ele, o jogo me excitava, como uma adolescente. As
outra meninas
dizem que isto é paixão.
Bati
de novo. Mais uma vez. Sem resposta. A terceira vez e nada.
Abri
lentamente a porta e entro pé ante pé, apreensiva. O assoalho
range, mesmo com meu cuidado. Corro de volta para porta . Ela se
fecha revelando um homem com uma arma apontada para mim.
Um
lado
Enquanto
o padre falava, senti minha raiva crescer. "O ódio cobre o
medo.
Você
tem que ter ódio para não ter medo. O medo de matar e o medo de
morrer. O
ódio elimina a culpa e o medo. Se sentir raiva deixe-a crescer
e
transforme-a
em ódio. Se não puder sentir ódio, não sinta raiva."
Talvez
fosse
bom deixar a raiva ir.
Quantas
vezes o padre veio me falar? Não importa. Pela primeira vez,
prestei
atenção
no que ele dizia:
— Por
que você vai desperdiçar sua vida?
Não
sei bem porque mas respondi:
— Eu
desejo a morte.
O
padre olhou horrorizado:
— Não
haverá paz na sua morte. Sua vida futura será de eterno sofrimento.
— Vida
futura? - respondi com desdém.
— Sim!
A morte é uma ilusão.
— Não!
A vida é uma ilusão! A sua vida!
Pronto!
Fiz
minha nona marca.
Outro
lado
Esconder-me
atrás da porta ou em outros lugares para assustá-la com uma arma
era parte de um jogo que começou há muito tempo. O primeiro a
deixou zangada, mas o seu coração bateu mas forte, não só pelo
susto. E se fosse só um susto eu não repetiria a dose. E venho
fazendo isso a bastante tempo. Não com frequência nem com
regularidade, senão estraga o jogo. Ela não deve saber quando. A
ansiedade, a expectativa e o risco a deixam excitada. E sua excitação
aumenta meu desejo.
O
risco é parte inerente do jogo. Talvez eu goste disso por ser
parecido com a vida que eu levo. O risco de morte temperada à vida.
Talvez eu faça isso quando a Morte esteja muito perto de mim. Como
hoje. Talvez haja relação com o desafio que ocorrerá daqui a
pouco. Talvez não devesse. "Nada de mulheres ou bebidas antes".
A regra de ouro não-escrita. Ou melhor escrita pelos sobreviventes.
Ela
É
ele. Pede-me... ordena-me que me dispa sob a mira de um arma.
Excitante?
Sim,
por ser ele. Não gosto de armas. Tornam os covardes em valentes. Em
valentes mortos.
O
risco de um tiro real faz meu coração bater. Sei que ele é hábil
e jamais me fará mal. E ele me quer assim. Medo, ansiedade e desejo.
Não é sempre. Às vezes quer leveza e ternura. Outras, só sexo.
Sempre penso que cada uma delas pode ser a última. Dou o melhor de
mim. Tempero sexo com desejo real e algo que nunca dou a ninguém.
Minha
alma.
Um
lado
A
morte do padre foi simples. Sem reação. Preferia uma luta. Com um
pouco de risco. Como a que que ocorrerá daqui a alguns minutos.
Duelos são como sexo.
Eu
diria que é melhor. Eu sempre saio satisfeito. E se fracassar,
será apenas
uma vez, sem lamentações posteriores...
Outro
lado
Ela
sempre faz assim. Se entrega de corpo e alma. Talvez me ame. Não
quero que isso aconteça. Um dia não voltarei. Talvez enjoe dela,
como de tantas outras. Talvez ela enjoe de mim, como outras tantas.
Talvez eu me encontre com a derradeira companheira um dia destes.
Mas
hoje eu ouvi dela algo que nunca ouvi de mulher alguma:
— Não
vá!
Ela
— Não
vá! — foi o que eu disse
Mas
ele foi. Vestiu-se, colocou o cinturão e seu revólver, o chapéu e,
surdo
a
meus apelos, saiu sem olhar para trás.
Sempre
assim. Sempre? Apenas hoje eu disse "não vá", embora
tenha pensado todas as vezes. Desde a primeira. Quando foi? Uma vez
no começo dos tempos... Antes eu não existia.
Corro
para a janela e o vejo caminhando pela rua, seguindo um ritual não
escrito. Seu adversário esta lá esperando. Talvez haja um diálogo
ritualizado, talvez não. Mais provável não. Ele é calado.
Diz
que já falou demais.
Um
lado
Lá
está ele, caminhando no centro da rua. Taciturno e quieto. Passos
decididos, mas lentos. Seu estilo. Isso quebra o ânimo dos menos
experientes.
Ele
chegará e por um milésimo de segundo vai me avaliar. Se achar que
não valho a pena, virará as costas. Como fez com tantos outros.
Alguns gritam-lhe provocações, que ele ignora. Todos sabem, que, se
ele quisesse, já teria morto o insolente. Outros não dizem nada e
entendem a mensagem. Outros ainda, sacam. Mesmo tendo que se virar,
ele é mais rápido. E acerta onde quer. A perna, o pé ou a mão.
Apenas uma lição. No peito se achar que o cara não vale nem uma
lição.
Outro
lado
Ando
devagar como se contasse os passos. A rua, com seus poucos metros,
parece infinita. No local marcado está ele. Um rosto frio e duro
como o meu. Minha vítima ou meu sucessor dali a segundos.
Sucessor!
Foi por isso que o treinei. Creio que bem demais, pois ele escolheu
corretamente sua décima marca. Um adversário digno.
Se
ele soubesse como eu mudei desde que o deixei na estrada... "A
descoberta do amor acaba com os dias de um pistoleiro. Ou ele se
aposenta ou morre."
Minhas
próprias palavras a um discípulo aplicado.
Há
um dias atrás, ele era somente uma lembrança de um fracasso.
Escolhi mal.
Um
fedelho arrogante que imaginei que morreria no segundo ou
terceiro encontro. Mas não, ele sempre escolhia adversários fracos
demais.
Estarei
fraco?
Ele
sente, como um abutre.
Ela
Estou
na janela observando a cena. Eu a vi inúmeras vezes. Um dos dois
sacará primeiro e o outro tombará. Desta vez, decido virar o rosto,
cansada
da
morte e desejando a vida.
Ao
virar o rosto, meu olhar pousa sobre a penteadeira e vejo algo que
não deveria estar ali. Assustada, desço correndo para a rua e
grito-lhe. Um erro.
Mas...
haveria outro jeito?
Um
lado
A
tola correu para a rua gritando o nome dele. Não podia deixar de
desperdiçar a chance. Um segundo de hesitação e eu estava em
vantagem. Mas sua reação foi rápida. Talvez não o suficiente. Meu
tiro o atingiu, mas tive a nítida sensação de que ele sacou e
apertou o gatilho primeiro. Mas não há mais nenhuma dúvida. Ele
está lá caído nos braços dela.
Morreu?
Não importa.
Viro
as costas, para demonstrar o meu desprezo e me afasto, ajeitando o
chapéu.
Outro
lado
Ela
vem correndo em minha direção e gritando e agitando sua mão. Não
posso tirar minha concentração. Acabarei o serviço e depois a
verei. O estranho é que sua mão está fechada, como se ela
estivesse segurando algo.
Meu
adversário percebe minha hesitação e saca. Meu reflexo está
ótimo. Acionei o gatilho primeiro. Mas ... sinto dor. No abdômen.
No abdômen!
Idiota!
"Nunca
atire no abdômen! Atire na cabeça ou no peito, mas nunca no
abdômen, se quiser matar e continuar vivo!"
Ela
me coloca em seu colo e vê que ainda estou vivo. Ele se afasta,
mostrando desprezo.
Chorando
ela me mostra o que tem na mão.
Ela
Seis
balas.
Ele
tirou do revólver quando estávamos no quarto para que não houvesse
nenhum risco de me ferir em seu jogo erótico.
O
outro pistoleiro olhou com desprezo para ele e virou as costas,
andando lentamente. Não pude tolerar mais aquilo. As seis balas
foram para seu destino.
Primeiro
para o tambor.
Chamei-lhe
a atenção, gritando que ele era um covarde. Virou-se para mim com o
olhar cheio de desprezo. Mas logo sua expressão passou para surpresa
quando
dei o primeiro tiro. Tentou reagir mas já o segundo já lhe atingia
o peito. E, antes que ele caísse, recebeu mais um. Os outros três
foram com ele já deitado.
Na
minha profissão, saber atirar pode ser muito útil. Normalmente para
afastar arruaceiros bêbados mais afoitos.
Fiz questão de aprender
com ele. Me
ensinou como se eu fosse um homem e como se, cedo ou tarde, fosse para as
ruas.
Dois
dias depois o homem que amava morreu em consequência dos ferimentos,
iludido com a possibilidade de eu seguir-lhe os passos.
"Há
algumas mulheres neste ramo". Dizia.
Mas, bem ou mal, eu prefiro lidar com a vida ainda que de uma maneira torta.
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Mas, bem ou mal, eu prefiro lidar com a vida ainda que de uma maneira torta. |
Alvaro 2012
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