segunda-feira, dezembro 23, 2013

O Gato de Kant



Tão certo como o sol pela manhã em sua janela, seu gato vinha deitar-se à tarde em seu colo, quando lia, escrevia ou simplesmente meditava. Uma tarde, quando meditava à cerca da constância do Universo, seu gato não veio. Estranhando, procurou pela casa, em vão. Coçando a cabeça, perguntou-se:

– Será que o sol estará na minha janela pela manhã?"

Alvaro Domingues

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Sonata


    Beethoven caminha taciturno
    Pensando em mais um noturno
   
    Ouve os sons em sua mente
    Mas na mente
                                somente
    Ouviremos sons maravilhosos
    Em acordes espantosos
    Mas jamais ouviremos intensamente
    O que ele ouviu na mente
                                                somente


Alvaro 2004
Para o aniversário de Beethoven

sábado, outubro 12, 2013

Sombras e Sonhos










Demônios povoam os sonhos.


De onde virá a Luz?
Sem medo ela porta um cálice,
Feito de dura pedra.

Em seu interior, um Sol
Tal qual uma hóstia
Tenta parti-lo em pequenos pedaços
E dar em comunhão à multidão de sombras

Uma voz cheia de poder, lhe diz
"Erga o Sol acima de tua cabeça
E mostra-o para que a multidão
Veja que tu portas a Luz".

Ela obedece e com o Sol
Na ponta dos dedos da mão esquerda
O ergue, exibindo-o para quem sofre
E as sombras se enchem de Luz.

sábado, julho 13, 2013

Syd Barret

*1946      +2006

Ele sonhava com cores e sons
Em seu delírio pessoal.
Mas seu delírio virou música
E sua música inundou o mundo.




Alvaro Domingues 2006

domingo, junho 16, 2013

Fragmentos de uma vida que não vivi




... Estou andando a esmo. Com um imenso senso de urgencia de chegar. Mas...onde? É certo que onde estou não é um lugar muito agradável. Está frio. Neva. É noite iluminada por fraca lua. Sei que não posso parar e não posso dormir. Mas não me lembro... Não me lembro... nem de quem sou. Toco minha testa com a mão direita. Sangue. Coagulado. Terá sido esta a causa de minha perda de memória? Olho para o chão. Meus pés que afundam na neve estão calçados com botas militares. De boa qualidade. Provavelmente sou um oficial. Toco minha farda em busca de algum sinal de minha posição. Devo ser um capitão ou algo assim. Minha mão esquerda carrega um machado. Há sangue na sua lâmina. Uma luta corpo a corpo? Sinto que ainda carrego o machado por outro motivo. Há uma ameaça. Sinto no ar. Olho em volta e percebo um vulto, depois outro. Muitos. São lobos. Eles me cercam e acompanham meus movimentos, sem fazer menção de ultrapassar um limite imaginário. O machado pouco me adianta. Se eles avançarem, matarei um ou dois, mas não terei agilidade para acabar com todos. Não tenho outra arma. Meu coldre está vazio. O olhar dos lobos não me parecem ameaçadores. Para eles posso ser quatro coisas e eles ainda não sabem o que sou. Uma presa, um predador, um companheiro ou um concorrente. Se eu conseguir me manter andando, sem me precipitar, até o sol nascer eles me deixarão.

Mas meus olhos pesam...

... muito...

segunda-feira, junho 10, 2013

Domador de Sonhos




Lembranças de sonhos passados de um futuro esquecido me povoam a mente. Busco paz, mas não encontro um riso sequer nestas lembranças, mesmo nas mais queridas. Lamento e silencio meus pensamentos.

Ouço um som vindo lá de fora. Como música de um circo distante, me convidando a deixar as lembranças de lado, curtir duas horas de um bom espetáculo e guardar a leveza dos trapesistas, a beleza das bailairinas, o riso das crianças, a graça do palhaço e aprender com o domador o estalar do chicote que domará meus leões interiores.


Alvaro 04/07/2007
imagem: Solidão - modificada a partir de imagem da net. 
Sem indicação de autoria

domingo, junho 02, 2013

Beleza Americana


Emblematicamente, 
em meus sonhos te vejo nua, 
como um dia te desejei,
sob uma chuva de pétalas de rosas vermelhas.
 
Vermelhas como o sangue que vi escorrendo de 
teus pulsos cortados.
 
Emblematicamente.
 
Alvaro 2006

quinta-feira, maio 16, 2013

Dentro da sua mente



O soldado caminha pela mata. Posso sentir até o cheiro da floresta tropical. Terra e grama molhada, como quando meu pai cuidava do jardim. Ouço o ruído quase imperceptível de seus passos. Sinto a sua apreensão. Um inimigo pode surgir de qualquer lado. A sua visão periférica registra cada movimento suspeito das folhas. Pelo que eu percebo ele sabe diferenciar o movimento natural do vento e dos animais do dos humanos, por mais que os inimigos procurem os imitar.

Será que ele tem algum sentimento além do estado de alerta? Percebo que ele não tem medo, mas deseja sobreviver. Como todos nós. Quase todos. Lembrei-me dos suicidas. Mas mesmo neles há ainda um fiapo de vontade de viver onde um bom negociador pode se agarrar e evitar a morte.

Na semana passada, eu fui um negociador. E fui também o suicida que ele devia salvar. Normalmente eles não permitem trocar de mente na mesma seção, mas eu obtive esta permissão com muito custo. Influência, troca de favores e dinheiro. Descobri que a permissão não passava de um papel escrito e que uma vez na mente de alguém, eu saía do controle deles. O manual de instruções, cheio de pode e não pode, era uma ficção. Mas não vou deixar que eles percebam que eu descobri isso. Se não eles não permitiriam que eu estivesse aqui hoje. Principalmente pelo que pretendo fazer.

Percebo que eu estou dispersando e deixo de prestar atenção no meu soldado. Meu? Sim. Sem questionamentos filosóficos por favor. No momento ele é meu veículo. Mas ele também é o motorista dele. Sou apenas um passageiro a espera de algo diferente. Do que vim buscar aqui.

Eu quero experimentar a morte. Não, isso não é proibido. Muita gente faz isso. Basta assinar um termo de responsabilidade para tirar o deles da reta. Foi por isso que escolhi o suicida. Queria sentir a sua queda ao pular do edifício e o encontro com a morte logo em seguida. Mas também queira sentir o que as testemunhas, ávidas por sangue, pesavam. Os familiares do suicida. E o negociador. Pena que ele era muito bom.

Não sei por quanto tempo ele andará pela mata em busca de seu objetivo. Nem de que lado da guerra ele está. Procuro perceber através do olhos dele alguma coisa em seu uniforme que permita reconhecer pelo menos se ele é um dos nossos ou do inimigo. Nada. Ri desta dúvida. É claro que é um dos nossos, do contrário nosso governo teria uma arma poderosíssima, permitindo olhar dentro da mente dos generais inimigos e logo ganharíamos a guerra.

Lembrei-me do negociador. E do suicida. E das informações privilegiadas. O negociador talvez não fosse tão bom assim. Ele podia ter entrado na mente do suicida antes, conhecido suas motivações e apertado os botões certos. Eu estive na mente dele. Parecia que ele seguia um roteiro.

Eu quero experimentar a morte. Pedi um soldado na linha de frente, com grande possibilidades de morrer. Talvez por isso é provável que eu esteja na pele de um inimigo. Para todos nós, nossos soldados não morrem. Quem morre são os outros. Escondemos as lágrimas das mães, filhos e viúvas.

Voltei a pensar nas informações privilegiadas. O governo e seus cidadãos. É desejo de todo governo manter controle sobre seus cidadãos. Se não podemos vigiar o inimigo, podemos vigiar a nós mesmos. Melhor, alguns de nós podem vigiar outros de nós.

Estou dispersando de novo. Não quero pensar sobre isso agora, do contrário não aproveitarei minha experiência. Mas meu soldado só anda e não disparou um tiro sequer. Talvez eu devesse ir mais fundo na mente dele. Um dos “não pode”. Saí da superfície e desci um pouco mais. Seus pensamentos periféricos, além da preocupação com a sobrevida. Talvez descubra de que lado ele está.

Na guerra, além das facções, há uma outra divisão: vítimas e heróis. A qual deles será que ele fará parte? Me parece mesquinho pensar apenas em usufruir de uma experiência de um soldado em vez de me preocupar com a luta e seu resultado para o meu país. Foda-se. Um amigo me disse que mantinham a guerra por razões econômicas e para dar um circo para o povo. Ninguém mais acreditava no futebol. O povo cansou das armações e do teatro. Na guerra, pensamos, o interesse do país é ganhar e, portanto sem manipulações. Ledo engano, dizia meu amigo. O nosso governo manipula os resultados. O que o nosso inimigo também faz. Eu acreditei nele. Daí não faz sentido pesquisar a mente dos generais em busca de estratégias de vitória. Estamos jogando para empatar.

Eu sabia que não devia me distrair. Enquanto fiquei filosofando, não percebi que o soldado conseguira chegar uma estrada e caminhava em direção às luzes de uma cidade. Achei um pouco estranho. Pela quantidade de luzes que ele via adiante, a cidade era relativamente grande. Mas, por que a surpresa? Vivíamos em cidades fortificadas, encravadas em locais improváveis. Desertos, ilhas, montanhas e, também, matas tropicais.

Meu soldado ainda está caminhado. Começo as sentir seu cansaço e também sua determinação em alcançar um objetivo. Talvez seu quartel, o mais provável, já que passara facilmente pela entrada fortificada da cidade. Se assim for, eu pedirei o meu dinheiro de volta. Prefiro pensar que ele é corajoso ou burro e seu destino, uma fortificação inimiga que ele quer destruir sozinho. Seus companheiros? Talvez mortos em emboscadas e ele deseje cegamente uma vingança. Improvável. Devo ter visto muitos filmes de ação estrelados por brutucus. Percebo apenas determinação. Estará apenas executando cegamente uma ordem? Se ele quer tanto chegar a seu destino, por que diabos ele não pede uma carona aos carros que buzinam pra ele no meio da rua?

Um soldado em trajes de campanha no meio da rua foge muito à normalidade, mesmo em tempo de guerra, mas as pessoas não percebem o absurdo. Apenas buzinam pra ele dar passagem e sair do caminho. Têm pressa em voltar pra casa pra dormir e no dia seguinte ir mais um dia morno em seus empregos e nem vão lembrar disso. Um bando de carneiros dominados.

Isso me fez retomar minhas conjeturas sobre o do governo e sua relação com esta tecnologia. Ele deve usá-la para monitorar uma parte da população, lendo seus pensamentos. Alguns cidadãos influentes em seu meio. Ricos, famosos e formadores de opinião. Talvez eu seja um deles. Estariam eles me seguindo agora, monitorando meus pensamentos? Talvez monitorassem também meu monitor. E o monitor de meu monitor. Um fractal imenso de controle até chegar ao presidente, que seria monitorado pela eminência parda.

Meu soldado consegue visualizar o prédio. Ele está perto de seu destino. Não é um quartel. É um prédio comercial. Ele entra pela porta da frente, atira em todos no saguão. Finalmente alguma ação, me regozijo. O prédio parece ser do nosso lado. Reconheço a arquitetura de milhares de prédios iguais àquele. Talvez a segurança interna se organize o mate. Ou venha a polícia. Ou nossas tropas. Ele parece alheio a isso. Toma o elevador, escolhe um andar e sobe. No andar de destino, procura uma porta. Entra. Há vários técnicos com avental branco. Ele mata todos. E, em uma cama hospitalar está alguém deitado, cercado de aparelhos. Ele olha o rosto, como para conferir e prepara-se para atirar.

Finalmente vou experimentar a morte.

Alvaro Domingues
imagem: editada a partir de 
 foto de  domínio público

domingo, maio 12, 2013

Mãe


Madame Monet e criança no jardim - Claude Monet

- O que é "mãe"? - Perguntou a menina ao seu robô de cabeceira
- Na Terra eram as mulheres que geravam as crianças em seus ventres, e os chamavam de "filhos". Aqui isso não foi possível.
- Por quê?
- Você sempre pergunta, não é mesmo? No passado, para salvar uma pequena parte da humanidade, óvulos fecundados foram gerados e congelados e ficaram a cargo de robôs-babás, como eu, à espera de um mundo a ser colonizado. Quando isso acontecesse, então, seriam descongelados e educados até virarem adultos e descerem no planeta.
- Você diz que eu crescerei e me tornarei uma mulher. Então poderei ser mãe, gerar uma criança em meu ventre?
- Sim.
- Isso seria bom?
- Como eu tenho lhe ensinado, tudo tem seu lado bom e ruim.
- Conte-me o lado ruim.
- Você levará nove meses para gerar um filho. Pode sentir cólicas, enjoos e dificuldades de locomoção. Quando seu filho nascer...
- Nascer?
- Sim. Sair de dentro de você. Quando ele nascer, será com dor ou por meio de uma intervenção cirúrgica, que poderá deixar sequelas em seu corpo. Depois que o filho nascer, terá que amamentá-lo, às vezes no meio da noite. E, se ele ficar doente, terá que cuidar dele, às vezes varando a noite em claro.
- Credo! E mesmo assim as mulheres queriam ser mães?
- A maioria que se tornou mãe, de fato queria. Das que não queriam, algumas se sentiam obrigadas a isso e outras não sabiam como evitar.
- Por que alguém iria querer uma coisa dessas?
- Pelo seu lado bom. As mães que desejavam sê-lo, sentiam um prazer enorme em gerar a criança, um ser que crescia pouco a pouco precisando de seu carinho e cuidado. Após ele nascer, elas sentiam-se bem ao cuidar dele e dar-lhe seu amor. A cada dia, se admiravam com seu desenvolvimento e crescimento. Adoravam ensinar-lhes a falar e andar. Acompanhá-los no seu dia a dia, levando-os e buscando-os no que se chamava escola. Educando-os com amor, mas com dureza quando necessário. E, às vezes, a criança lhe devolvia o amor, que a mãe enxergava em dobro ou triplo. E isso era maravilhoso, fazendo-a esquecer das dores e dificuldades.
- Você é minha mãe?
- Não. Sou apenas um arremedo. Cuido de você, lhe educo, dou lhe atenção. Mas não posso lhe dar o amor que uma mãe poderia dar.
- Queria ter tido uma mãe...
- Eu também. Eu também! 

domingo, maio 05, 2013

Antes que o sol se ponha


O Sol já nasceu. Eu posso então sair para as compras. Eu chamo de compras, mas no início as pessoas que acreditavam que um dia ainda viria a ter lei e ordem chamavam de “saque”. Hoje ninguém mais guarda os supermercados. Os sobreviventes são poucos e cada um está preocupado consigo mesmo ou, no máximo, com a sua família. Lutar por provisões não tem mais sentido.
O supermercado hoje não está muito cheio. Mesmo quando a sobrevivência está ameaçada, a maioria não gosta de levantar muito cedo. Eu também confesso que não, mas meu dia, como sempre é muito comprido. Carlos, meu filho mais novo encomendou um livro da biblioteca. Não vou negar-lhe. Hoje já não tem riscos em ir ao centro e ninguém quer saquear livros.
E há ele. As crianças esperam que eu cuide dele. Ainda que ele esteja neste estado, eles ainda o chamam de pai. Sempre foi assim, mesmo antes da Doença.
As compras já terminaram, vou pra casa e guardo com cuidado as mercadorias no armário dou o livro para Carlos. Gravuras, letras e frases. Não quer ficar para trás. Quer poder ler. Mais do que nunca ler é importante pra sobreviver.
Vou agora para a minha missão de todos os dias. Preciso encontrá-lo. Hoje já não é muito difícil. Depois que aprendi que os acometidos da Doença vão se esconder do sol e dos caçadores sempre em lugares que evocam onde se sentiam mais seguros. O último baluarte de sua humanidade.
Não sei por que demorei a perceber. Mesmo o tendo encontrado mais de uma vez em locais similares. Segundo o psicologismo de revistas femininas que um dia perdia tempo em ler, eu estava me escondendo uma verdade que eu não queria enfrentar. Fato.
Encontrei-o como sempre sentado numa mesa de bar. Como sempre. Só que agora durante o dia. E a diferença que não ia levá-lo para casa, quase arrastado. Eu teria que dar um jeito ali mesmo.
Minha filha mais velha, Miriam, havia lavado uma camisa e uma calça para que eu as trocasse. As roupas que ele estava vestindo estavam rasgadas devido aos múltiplos embates com os sobreviventes. A maioria dos sobreviventes estava bem organizada e lutava ferozmente após o anoitecer. Os mais ousados saiam pela manhã para caçar. Um dia isso acabaria. De um jeito ou de outro. Mas o mais provável é que eles vencessem e depois se extinguissem, não tendo mais o que comer. Ou talvez algum abnegado descobrisse a cura.
Mas enquanto isso durasse, ele ainda era meu marido e pai das crianças. Como antes, quando altas horas ele chegava em casa, embriagado. Tirei-lhe os trapos que estava vestindo. Melhor não pensar sobre o sangue em sua camisa. Fiz alguns curativos sobre ferimentos, vários em seu corpo, mesmo sabendo que nunca iriam cicatrizar. Vesti-lhe a roupa limpa. Levei-o até a mesa e coloquei-o sentado. Levantei e sentei alguns outros como ele, colocando-os como se estivessem conversando, tentando dar uma aparência de realidade, mesmo que fosse uma realidade que desejara ver finda.
Tive que deixá-lo, pois o sol se poria dali há algumas horas. Na volta peguei munição para as armas de fogo em casa. Embora me digam que eles não têm sentimentos, em todo este tempo de ataques sistemáticos, nunca vi o pai dos meus filhos entre os que atacavam nossa casa.
Alvaro Domingues
Publicado originalmente  como podecast em PodEspecular

quinta-feira, abril 25, 2013

Caleidoscópio




Um instante na multidão em movimento.
Fragamentos ...
De centenas de vidas em um fugaz momento.
Quantos romances não daria 
juntar milhares de sentimentos?
Mas só interessam dois olhares que se encontram.
Porque, aqui, há só um olhar.
Alvaro A. L. Domingues
imagem Povo nas Ruas em 25 de Abril, foto obtida em site do Governo Português

segunda-feira, março 18, 2013

Fim do espetáculo



O palhaço em seu camarim coloca a peruca na caixa. 

Sob as luzes vai retirando a maquiagem, revelando um homem cansado de mais um espetáculo. De muitos. De muitas temporadas. Foram três hoje e serão três amanhã. 

Tem sido assim há trinta (quarenta?) longos anos. Ele quase só pensa em dormir. 

Quase. 

Ele ainda tem tempo de lembrar do riso e dos olhos brilhantes da menina da primeira fila da platéia. Ela ainda acreditava em magia...



domingo, março 17, 2013

Um sonho


Sonhei um dia
Em hora tardia
Que, em campo de trigo,
O sol busca abrigo.
Seu rosto encondia
E, em rubra luz,
Anunciava a noite.
Oh! Quem é que vem do poente?
Em delírio delinquente,
Vi Deusa deslumbrante
De beleza estonteante.
Juntos, Sol e Lua por um instante,
Se perdem em beijos ardentes.
Você e eu em paixão delirante,
Em abraços indecentes
Em busca de crescentes
Insistentes
Dementes
Prazeres inconscientes.
Lentamente
o Sol, imponente,
Deixa a Lua em lagrimas somente.
A Noite virá e ela apenas lamentará
Não ser como os amantes
Que agora vê galantes
triunfantes
    Tal qual infantes.

Se amando a espera da Aurora
Quando Sol novamente mostrará sua face
Oferecendo novo enlace
Aguardando que sua amada
Agora reanimada
Num instante o abrace.

sábado, março 16, 2013

Tarde em Veneza




Todas as tardes em Veneza o barqueiro navega. Todas as tardes em Veneza, você o observa. E sonha. Quem deverá acompanhá-la neste passeio? Ninguém, além do barqueiro. Você seguirá só no barco. Sentindo o sol e indo para muito além. De Veneza. Do Mundo.

O barqueiro já fez milhares de viagens naquelas águas. Nenhuma novidade mais. Apenas você que o observa e sonha. E ele também sonha. Que ele um dia a levará para além da bela Veneza, onde você e ele um dia poderão se amar.

quinta-feira, março 07, 2013

Dia da Mulher


Ele perguntou-se porque ainda existia este dia
E lembrou-se da mulheres árabes mutiladas
Das russas presas por rebeldia
Das indianas estupradas
Das Amélias agredidas
Mesmo sendo mulheres de verdade
Das adolescentes anoréxicas
Em busca de um corpo além da realidade 
E de tantas oprimidas...
Depois lembrou-se da esposa e filha
E de que sua casa não era uma ilha
Abraçou-as e chorou

Como uma mulher
Alvaro A. L.  Domingues

segunda-feira, março 04, 2013

Noite de autógrafos virtuais

Um amigo meu, o Bruno Cobbi, que eu não via há muito, me mandou um e-mail me convidando para o coquetel de lançamento de seu livro. 

No convite apenas o endereço de um site, mas não do local. Resolvi telefonar. 


– Bruno, aqui é seu amigo Álvaro. 

– Álvaro? Diga qual o seu twitter, pra eu saber de qual Álvaro se trata. 

– Deixa disso Bruno. A gente se conheceu nos eventos de FC & Fantasia e depois participamos dos encontros dos Escritores de Quinta. Sou o Pai Nerd! 

– Tá, já sei quem é. O que manda?


 – Você me mandou um convite por e-mail, pra a noite de autógrafos de seu livro, só que não mandou o endereço… 

– Ah! Por que não perguntou por e-mail? 

– Porque eu lá sei eu se você abre sua caixa postal todo dia… Diz aí onde é… 

– Conservador! O mundo agora é todo virtual! Se prestar bem atenção, tem o endereço sim, no final da mensagem. 

– Lá só há um endereço eletrônico, de um site. 

– Pois é este mesmo. É um bar virtual. Será aberta uma sala de vídeo-conferência. 

– O quê?!?! Mas é uma noite de autógrafos… Como você vai autografar os exemplares de seu livro? 

– O livro é virtual. O pessoal vai baixar o livro e eu faço uma marca digital, única e irremovível, no arquivo. 

– Tá, mas é o canapé e o vinho branco? Isso não pode faltar… 

– Ao entrar no nosso site, você recebe em sua máquina um número e uma senha. Você escolhe um link de um buffet conveniado com a editora, perto da sua casa, e eles te entregam, em até quinze minutos, vinte salgadinhos e uma garrafa de vinho branco… 

– Mas isso não vai ter a menor graça! Quero apertar sua mão, lembrar os velhos tempos, e tudo mais. 

– Na hora da vídeo-conferência, o meu webdesigner faz uma montagem do aperto de mão… 

– Continuo achando muito estranho… 

– Seja menos retrógrado rapaz… 


Continuamos nossa conversa por um ou dois minutos  e, devido a insistência do meu amigo fui à sala de chat no dia e hora marcados. Baixei seu livro autografado, pagando-o on line com meu cartão de crédito. O livro era bom, os canapés razoáveis, mas o evento foi chatíssimo. 

Alguns meses depois, recebi outro convite, desta vez pelo correio. Era uma noite de autógrafos do mesmo livro, em papel. 

Telefonei pra meu amigo: 

– Aqui é o Álvaro! Recebi seu convite, e estou ligando pra confirmar minha presença…. 

– Que bom! Vai ser um sucesso! Alguns colegas nossos dos Escritores de Quinta irão… 

– Sim, será muito bom. Mas não resisto a fazer uma pergunta. Por que lançar o livro em papel, num evento mais tradicional? 

– É que o outro editor me pagou com dinheiro virtual. E eu não consegui comprar nada real com ele…



publicado originalmente no Escritores de Quinta, 
homenageando um dos organizadores, Bruno Cobbi

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Até que a guerra os separe



Frito um ovo. A gema inteira bem no centro da clara. Como ele gosta. Faço isso todas as manhãs, desde que nos casamos. Uma xícara de café forte na mesa da cozinha.  O inicio da manhã se completaria com ele chegando do seu trabalho noturno. Às vezes chegava antes e me abraçava e me beijava enquanto ainda estava fritando o ovo. Por causa disso, algumas vezes o ovo queimava e ele fingia ficar zangado.
Mas hoje ele não veio, como não tem vindo desde quando foi convocado para lutar na Guerra. Eu não diria convocado, mas, sequestrado. O governo do Sudeste não reconheceu seu direito de ficar em nosso estado, limítrofe entrre as duas regiões, declarado neutro na guerra Sul-Sudeste contra Norte-Nordeste. No Sudeste a cidadania era solar. Uma vez nascido lá era para sempre de lá. E o nosso governo, para assegurar sua neutralidade, permitiu que ele fosse levado, separado de sua esposa.

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

Modelo do Ano



Dois nerds, interessados em viagens no tempo, tem suas vidas modificadas por quando um deles se apaixona por um garota misteriosa. O outro segue em frente com suas pesquisas. Tempos depois se reencontram. Quem era a garota misteriosa que sumiu na poeira do tempo?

Conto meu, originariamente publicado na coletânea Time Out, em ebook na Amazon.

Esta configurado para o Kindle, porém é possível converte-lo para outros formatos ou usar um aplicativo gratuito para PC ou Tablets, disponibilizado pela própria Amazon.

Para obter o ebook, clique aqui.




quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Marcha das cinzas






O vento leva as cinzas
De queimadas fantasias.
Ousamos vesti-las por três dias.

O vento leva o sonho
De reis e rainhas
Que hoje se tornam garis
Empurrando seus restos pela rua.


Alvaro 2007
imagem: Garis  na quarta feira de cinzas de 2007 
foto jornalísta com efeito , sem autoria


sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Amor de Carnaval


Arlequim


Arlequim andava no meio da multidão. Todos dançavam como que em câmara lenta, tropeçando naquela figura que apenas andava.

Seus olhos observavam as mulheres seminuas no salão, a procura de alguém. De um amor. 

Todas lhe despertavam o desejo, mas não a paixão. 

Foi quando ela surgiu. Vestida dos pés a cabeça. Fantasiada de anjo. Imaculada. Indecentemente pura. Ele não resistiu: ajoelhou-se diante da musa e num gesto teatral, arrancou o coração de seu peito e, ainda pulsando, colocando-o aos pés da amada.

domingo, fevereiro 03, 2013

O chamado da floresta





-- Me conte outra vez mamãe do primeiro dia em que cheguei aqui...
O menino me perguntava mais uma vez pela história que eu repetia a muito tempo.
-- Você tinha dez anos e não falava. Só rosnava. Os homens que o trouxeram me disseram que você podia ser meu filho recém-nascido que eu perdera a dez anos.
“No começo desconfiei, pois achava que meu filho tinha morrido naquela mesma noite do ataque. A noite em que vi a alcatéia.”
Como sempre o menino, agora um rapaz, me interrompeu:
-- Conte-me mais sobre aquela noite.
A resposta que dei não foi a mesma que ele vinha ouvindo sempre:
-- Aguarde, mas eu não vou contar a mesma história. Hoje eu contarei a verdade.
O menino arregalou os olhos, mas não se atreveu a me perguntar qual seria a verdade. E continuei a história:
-- Dois homens o traziam como se fosse um animal selvagem. Percebi o ódio em seu olhar. Deduzi que fora maltratado. Me contaram que fora capturado poucos dias antes. Meninos-lobos não eram comum na região. E minha trágica história do filho desaparecido em meio aos lobos foi a única que lembraram. Eu não tinha qualquer esperança de achar meu filho. E durante dez anos eu tentara esquecer a violência com que me fora tirado.
“Você praticamente foi jogado dentro de minha casa e os homens nem esperaram por um sim ou não. Mas meu instinto materno falou mais alto. Mesmo que não fosse meu filho, precisava ser acolhido. De certa forma era. Sua história indicava isso.
“Você reviveu outra coisa além de meu instinto materno. Você acordou a bruxa que um dia fora e que deixara de ser naquela fatídica noite. Um encantamento ajudaria a dar-lhe as palavras para que pudéssemos nos comunicar. Dei-lhe a voz que hoje você tem. Tentei, então saber de você a verdade, porém suas lembranças do incidente havia se dissipado.
“Como o passar do tempo, o nosso amor foi crescendo e uma certeza foi crescendo: você realmente estava lá. O que torna o dia de hoje muito cruel para nós dois.
Os olhos do rapaz expressavam sua dúvida diante do que eu falava. Senti que devia me abrir, por mais que doesse.
-- Meu filho, desculpe se o chamo assim, mas me sinto sua mãe de fato. E de certa forma sou responsável pela sua existência.
“Sou uma Bruxa. As pessoas me procuravam para aliviar seus males e eu as ajudava com meus encantamentos. Garantia a saúde e a colheita da comunidade. Foi quando um homem, um fanático religioso, me apontou como a origem de todo o Mal. O seu discurso inflamado mexeu com o emocional das pessoas e a comunidade pacata se transformou num poço de ódio. Um ódio direcionado a mim. Completava o fato que eu, mesmo sem estar casada, estava grávida. O homem primeiro me qualificou como adúltera. Depois que o meu filho ainda não nascido seria a encarnação do demônio.
“Um dia, um grupo de homens armados com paus e pedras, liderados pelo fanático, cercaram e depois invadiram minha casa. Corri para fora, apesar do estado avançado de minha gravidez. Vez por outra uma pedra me atingia a cabeça ou as costas. Contudo, a dor física não era maior que a dor da intolerância.
“A perseguição me levou a floresta. Pensei que se corresse em direção ao temido lar dos lobos eles me abandonassem. Mas não! Corriam e corriam, gritando palavrões e blasfêmias. Caí cansada da perseguição. Em poucos segundos senti a presença deles e logo senti as primeiras pauladas. Meu pensamento foi em direção a meu filho. A necessidade de salvá-lo meu deu forças e me ergui já gritando as primeiras sílabas de um poderoso encantamento. Isso os fez hesitar. Percebi que o simples medo de minha feitiçaria não os faria desistir. Então continuei com as minhas fortes imprecações. Repentinamente eles me viram as costas e correram. Percebi que não fora eu a causa de tamanho terror. Olhei atrás de mim e vi então o grande lobo que os assustara. Meu instinto falou mais alto. Terminei o encantamento e o lancei ao lobo.
“Rapidamente percebi meu erro. Os olhos do lobo me revelaram que ele estava ali para me proteger. Porém, não podia mais deter o feitiço de morte que lhe lançara. Rapidamente decidi mudar o encanto para transformação, o que me daria tempo para corrigir meu erro.
“O encanto atingiu o lobo em cheio. Pude observar sua transformação dele em um bebê. A minha preocupação com meu filho fizera escolher esta forma inconscientemente. Sorri com o resultado e desmaiei em seguida.
“Quando acordei estava só. Vi no chão pegadas de lobos e sinais de que tinha arrastado a criança. Arrastei-me até a cabana, onde poucas horas depois dei a luz a uma criança. Ela morreu, pouco depois, vítima das várias pancadas que meu ventre sofrera.
“Enterrei-a na floresta, seguindo antigo ritual. Amarguei minha dor sozinha. Meses depois as pessoas começaram a me procurar como antes. Soube que o fanático religioso fora linchado pela população após ter estuprado uma menina. Muitas das pessoas que me procuravam mostravam em seu rosto culpa e vergonha. Poucos tiveram coragem de perguntar o que tinha acontecido com a criança. Contei-lhe o dera a luz na floresta e que os lobos o haviam levado. E que não faria mais magias.
O menino olhou-me com os olhos cheios de lágrimas. Os mesmo olhos de lobo que me olharam surpresos com minha atitude, anos antes.
-- Por que não me contou antes? -- perguntou-me triste.
-- Por hoje, meu filho. Somente hoje há conjunção astrológica favorável para eu desfazer meu feitiço e devolver-lhe sua verdadeira natureza.
-- Mas eu não quero ser um lobo...
-- Não, meu filho! Sua verdadeira natureza ira se manifestar. Suas lembranças de sua vida selvagem virão. Sentirá falta de seus companheiros e desejará correr e caçar.
-- Consulte seu verdadeiro eu. Olhe pela janela e veja a lua cheia o chamando para um caçada, ao lado de uma grande matilha.
O menino olhou pela janela e percebi que começava a lembrar-se. O efeito da conjunção estava começando a acordar o lobo dentro dele.