domingo, maio 05, 2013

Antes que o sol se ponha


O Sol já nasceu. Eu posso então sair para as compras. Eu chamo de compras, mas no início as pessoas que acreditavam que um dia ainda viria a ter lei e ordem chamavam de “saque”. Hoje ninguém mais guarda os supermercados. Os sobreviventes são poucos e cada um está preocupado consigo mesmo ou, no máximo, com a sua família. Lutar por provisões não tem mais sentido.
O supermercado hoje não está muito cheio. Mesmo quando a sobrevivência está ameaçada, a maioria não gosta de levantar muito cedo. Eu também confesso que não, mas meu dia, como sempre é muito comprido. Carlos, meu filho mais novo encomendou um livro da biblioteca. Não vou negar-lhe. Hoje já não tem riscos em ir ao centro e ninguém quer saquear livros.
E há ele. As crianças esperam que eu cuide dele. Ainda que ele esteja neste estado, eles ainda o chamam de pai. Sempre foi assim, mesmo antes da Doença.
As compras já terminaram, vou pra casa e guardo com cuidado as mercadorias no armário dou o livro para Carlos. Gravuras, letras e frases. Não quer ficar para trás. Quer poder ler. Mais do que nunca ler é importante pra sobreviver.
Vou agora para a minha missão de todos os dias. Preciso encontrá-lo. Hoje já não é muito difícil. Depois que aprendi que os acometidos da Doença vão se esconder do sol e dos caçadores sempre em lugares que evocam onde se sentiam mais seguros. O último baluarte de sua humanidade.
Não sei por que demorei a perceber. Mesmo o tendo encontrado mais de uma vez em locais similares. Segundo o psicologismo de revistas femininas que um dia perdia tempo em ler, eu estava me escondendo uma verdade que eu não queria enfrentar. Fato.
Encontrei-o como sempre sentado numa mesa de bar. Como sempre. Só que agora durante o dia. E a diferença que não ia levá-lo para casa, quase arrastado. Eu teria que dar um jeito ali mesmo.
Minha filha mais velha, Miriam, havia lavado uma camisa e uma calça para que eu as trocasse. As roupas que ele estava vestindo estavam rasgadas devido aos múltiplos embates com os sobreviventes. A maioria dos sobreviventes estava bem organizada e lutava ferozmente após o anoitecer. Os mais ousados saiam pela manhã para caçar. Um dia isso acabaria. De um jeito ou de outro. Mas o mais provável é que eles vencessem e depois se extinguissem, não tendo mais o que comer. Ou talvez algum abnegado descobrisse a cura.
Mas enquanto isso durasse, ele ainda era meu marido e pai das crianças. Como antes, quando altas horas ele chegava em casa, embriagado. Tirei-lhe os trapos que estava vestindo. Melhor não pensar sobre o sangue em sua camisa. Fiz alguns curativos sobre ferimentos, vários em seu corpo, mesmo sabendo que nunca iriam cicatrizar. Vesti-lhe a roupa limpa. Levei-o até a mesa e coloquei-o sentado. Levantei e sentei alguns outros como ele, colocando-os como se estivessem conversando, tentando dar uma aparência de realidade, mesmo que fosse uma realidade que desejara ver finda.
Tive que deixá-lo, pois o sol se poria dali há algumas horas. Na volta peguei munição para as armas de fogo em casa. Embora me digam que eles não têm sentimentos, em todo este tempo de ataques sistemáticos, nunca vi o pai dos meus filhos entre os que atacavam nossa casa.
Alvaro Domingues
Publicado originalmente  como podecast em PodEspecular

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