O
Sol já nasceu. Eu posso então sair para as compras. Eu chamo de
compras, mas no início as pessoas que acreditavam que um dia ainda
viria a ter lei e ordem chamavam de “saque”. Hoje ninguém mais
guarda os supermercados. Os sobreviventes são poucos e cada um está
preocupado consigo mesmo ou, no máximo, com a sua família. Lutar
por provisões não tem mais sentido.
O
supermercado hoje não está muito cheio. Mesmo quando a
sobrevivência está ameaçada, a maioria não gosta de levantar
muito cedo. Eu também confesso que não, mas meu dia, como sempre é
muito comprido. Carlos, meu filho mais novo encomendou um livro da
biblioteca. Não vou negar-lhe. Hoje já não tem riscos em ir ao
centro e ninguém quer saquear livros.
E
há ele. As crianças esperam que eu cuide dele. Ainda que ele esteja
neste estado, eles ainda o chamam de pai. Sempre foi assim, mesmo
antes da Doença.
As
compras já terminaram, vou pra casa e guardo com cuidado as
mercadorias no armário dou o livro para Carlos. Gravuras, letras e
frases. Não quer ficar para trás. Quer poder ler. Mais do que nunca
ler é importante pra sobreviver.
Vou
agora para a minha missão de todos os dias. Preciso encontrá-lo.
Hoje já não é muito difícil. Depois que aprendi que os acometidos
da Doença vão se esconder do sol e dos caçadores sempre em lugares
que evocam onde se sentiam mais seguros. O último baluarte de sua
humanidade.
Não
sei por que demorei a perceber. Mesmo o tendo encontrado mais de uma
vez em locais similares. Segundo o psicologismo de revistas femininas
que um dia perdia tempo em ler, eu estava me escondendo uma verdade
que eu não queria enfrentar. Fato.
Encontrei-o
como sempre sentado numa mesa de bar. Como sempre. Só que agora
durante o dia. E a diferença que não ia levá-lo para casa, quase
arrastado. Eu teria que dar um jeito ali mesmo.
Minha
filha mais velha, Miriam, havia lavado uma camisa e uma calça para
que eu as trocasse. As roupas que ele estava vestindo estavam
rasgadas devido aos múltiplos embates com os sobreviventes. A
maioria dos sobreviventes estava bem organizada e lutava ferozmente
após o anoitecer. Os mais ousados saiam pela manhã para caçar. Um
dia isso acabaria. De um jeito ou de outro. Mas o mais provável é
que eles vencessem e depois se extinguissem, não tendo mais o que
comer. Ou talvez algum abnegado descobrisse a cura.
Mas
enquanto isso durasse, ele ainda era meu marido e pai das crianças.
Como antes, quando altas horas ele chegava em casa, embriagado.
Tirei-lhe os trapos que estava vestindo. Melhor não pensar sobre o
sangue em sua camisa. Fiz alguns curativos sobre ferimentos, vários
em seu corpo, mesmo sabendo que nunca iriam cicatrizar. Vesti-lhe a
roupa limpa. Levei-o até a mesa e coloquei-o sentado. Levantei e
sentei alguns outros como ele, colocando-os como se estivessem
conversando, tentando dar uma aparência de realidade, mesmo que
fosse uma realidade que desejara ver finda.
Tive
que deixá-lo, pois o sol se poria dali há algumas horas. Na volta
peguei munição para as armas de fogo em casa. Embora me digam que
eles não têm sentimentos, em todo este tempo de ataques
sistemáticos, nunca vi o pai dos meus filhos entre os que atacavam
nossa casa.
Alvaro Domingues
Publicado originalmente como podecast em PodEspecular
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