domingo, novembro 18, 2012

O que Alice encontrou na Eternidade



Alice gostava de olhar pra o velho relógio de pêndulo, alto com um armário e estreito como um... como um ...como o padre magricela que vinha de vez em quando conversar com seu avô.

Mas o velho relógio não era chato como o velho padre. É certo que só falava tic, tac, mas era melhor ouvi-lo do que ouvir as mesmas exortações do pároco. Ele procurava tirar seu avô da vida de ateu (“agnóstico”, como ele se definia), ameaçando-o com as penas eternas do inferno.

No começo Alice tinha medo do inferno e das terríveis penas que o padre descrevia, mas, pouco a pouco, o medo foi sendo abandonado devido às descrições cada vez mais grotescas e exageradas do padre, passando do terror ao ridículo em poucos meses.

O que ainda a incomodava nas falações do “representante de Deus” era a palavra Eternidade. Resolveu perguntar ao relógio:

– Relógio, o que é Eternidade?

Prestou atenção e só ouviu o tic, tac de sempre. Sempre? A eternidade seria o sempre? Então devia ser chata mesmo e podia estar lá no inferno. Sua mãe sempre a repreendia, seus professores sempre lhe davam nota baixa, porque ela sempre esquecia as respostas certas... Ou talvez o nunca. Ela nunca podia comer a sobremesa antes do jantar, nunca podia dormir depois das nove e nunca podia subir em arvores porque era menina e meninas sempre vestiam saia.

O pendulo do relógio ia pra lá e pra cá. Tic. Tac. Sempre. Nunca. Sempre. Nun...

O relógio assumiu um ar grave. “Ar?”, pensou Alice intrigada. Relógios não têm “ar” de coisa nenhuma a não ser de uma cara cheia de números e ponteiros. Se fosse possível, o relógio teria sorrido. Alice olhou melhor e viu que o relógio lhe sorria com uma boca, debaixo de um nariz, debaixo de dois olhos.

–  Pensei que isto nunca ia acontecer! – gritou Alice, meio assustada,  meio excitada.

– Pronto! – respondeu o relógio. Você acabou com a eternidade do nunca.

Alice ficou intrigada e pensou um pouco, tentando entender o que o relógio lhe falava. Desistiu logo e perguntou:

– Como assim?

O relógio assumiu novamente o ar grave e respondeu com gravidade necessária:

– Nunca ia acontecer, e aconteceu! O nunca não é mais eterno!
Alice não gostou que o relógio tivesse ralhado com ela! Já não chegava seu pai, sua mãe, sua irmã e os professores? Cheia de raiva, revidou:

– Seu velho ingrato! Eu sempre lhe dei atenção e você vem ralhar comigo!

O relógio não se abalou e continuou no mesmo tom:

– Lá se foi o sempre também!

Alice ficou mais intrigada ainda. Como ela podia ter destruído a eternidade do sempre? Sempre é sempre! E pronto!

Como se estivesse lendo seus pensamentos, o relógio respondeu:

– Como sempre? Estou nesta sala há pelo menos vinte anos e você tem no máximo uns doze. E pelo menos durante uns cinco anos você nem notou que eu existia!

– Vocês relógios se melindram facilmente! – queixou-se a menina.

– Você já melindrou algum outro relógio? – perguntou ele, cheio de ironia.

– Nunca! – gritou a menina já farta das tiquetaqueadas mal educadas.

O relógio recolheu-se a seu velho semblante cheio de números, diante da resposta de Alice, fingindo indiferença. A menina resolveu esquecê-lo e ir brincar lá fora. Talvez o velho relógio de sol do jardim tivesse a fim de conversar.

Chegando ao jardim correu para o relógio de sol. Encontrou-o com uma expressão tristonha e, preocupada, interpelou-o:

– Por que está triste?

O relógio de sol de uma suspirada e respondeu:

– Você também estaria triste se não pudesse ser você mesma.
 
Alice arrepiou-se, ao lembrar  que uma vez perdera a identidade e ficara sem saber quem era por um bom tempo. O relógio continuou:

– Como você pode ver, hoje o tempo está nublado. Sem sol não sou relógio, muito menos “de sol”!

A menina sentiu que as coisas não estavam indo bem para ela. Será que todos os relógios eram assim tão mal humorados? Talvez o seu trabalho, de marcar dia a pós dia o tempo dos homens os deixassem naquele estado. E se não houvesse relógios? Talvez o tempo não andasse. Seria criança eternamente, como Peter Pan. Mas teria que ir para a escola e a aula não acabaria nunca. Procurou tirar isso da cabeça. Com relógio, teria que acordar cedo, mas também saberia quando haveria recreio e quando voltaria pra casa.

Mas ainda não sabia o que era eternidade. Pensou em perguntar para o avô, mas sabia que respostas dele teriam palavras difíceis que só serviriam para confundi-la mais. Adultos geralmente fazem isso com crianças quando não sabem a resposta.

Alice sentou-se no balanço e deixou-se balançar. “Como o pendulo do relógio”, pensou. O vai e vem do balanço acabou por acalmá-la, deixando livres seus pensamentos. O futuro desejado misturou-se ao passado lembrado. O passado lembrado deu lugar aos sonhos antigos e esquecidos. Os novos sonhos misturam-se a imagens de brincadeiras e trechos de livros. Neste estado ela viu a folha.
 
Uma folha levada pelo vento, presa num redemoinho, subia e descia sem tocar de novo o chão fazendo sempre o caminho de ir e vir. O ponto de saída e de chegada eram os mesmos, mas os caminhos entre eles eram muitos. A cada ciclo, a folha fazia um caminho diferente e, tal qual um caleidoscópio, sem nunca se repetir. E então ela sentiu. Ainda que o vento parasse, ainda que de repente não houvesse mais a folha, aquele momento que ela observara seria eterno.

E seu rosto iluminou-se.

Alvaro 2010
Imagem: Alice atravessa o espelho — John Tenniel
relógio grande, relógio de sol  e folha ao vento, sem autoria

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