Daniela
estava deitada, olhando a bailarina de sua caixa de música. A melodia era uma
valsa de Strauss, que tocava em todos os salões. Mas valsa pressupunha um par.
Masculino. Uma bailarina solitária não poderia dançar uma valsa. Dançara a
última com Roberto, um dos muitos pretendentes à sua mão. Ele tinha sido o mais
persistente, a ponto dela ter que dispensá-lo com dureza. Contaram que ele
passara a beber. Exagero. Ele só tomara um pileque no dia.
E se ela
fosse o par da bailarina? Afastou o pensamento. Tolo devaneio. A bailarina era
uma diminuta figura de porcelana e ela era uma mulher. Gostava de sê-lo. Mas
todos a olhariam torto se ela dançasse com outra mulher. Aliás, quem das moças
gostaria de dançar com ela?
Voltou a
olhar a bailarina. Traços delicados como o seu. Mas dura e fria. O único
movimento que fazia era um rodopio. Fechou com raiva a caixa de música.
Levantou-se e vestiu-se com suas melhores roupas. O pai gostava de vê-la
elegante e achava que ela devia ficar longe de sua oficina. Ele era um grande
fabricante de brinquedos, tão hábil que era apelidado de Gepeto. Ela seria sua
Pinóquia. Sem um nariz enorme ou outra coisa que crescesse. Riu de seu
pensamento obsceno.
Ela
despiu-se novamente. Hoje, nada de sedas, corseletes e saias volumosas. Vestiu
sua roupa de trabalho. Um macacão, com bolsos amplos para guardar ferramentas e
peças. Desceria mais uma vez à oficina do pai. Ele ficaria contente em vê-la,
apesar de achar que lugar de moças não era numa oficina. Diferente do Gepeto,
ele não era um marceneiro, mas um hábil relojoeiro e criava brinquedos de todos
os tamanhos, com diversos mecanismos de movimento. E, similarmente ao Gepeto,
estava fazendo bonecos para um circo de marionetes. Marionetes sem cordão, como
Pinóquio, mas segundo ele, sem alma, apesar de terem alguma limitada
inteligência. Os números de canto e dança poderiam ser pré-gravados em cartões
perfurados e introduzidos num compartimento nas costas do boneco.
O pai
primeiro sorriu, depois mostrou uma carranca fingida, de reprovação:
– Querida, você não devia vir até aqui!
Ela sorriu
e respondeu:
– Paizinho, você sabe que adoro aqui, mexer com as
peças, ouvir os mecanismos funcionando e o cheiro de graxa.
Ele sorriu
e passou um mecanismo de corda para a mão da filha e disse:
– Tente achar o que o está travando. Você sempre foi
boa nisso. Vê o que meus olhos cansados não enxergam.
Ela olhou
e identificou rapidamente o problema, devolveu a peça e disse:
– É uma rebarba nesta engrenagem. Quando este dente
chega em determinado ponto, o mecanismo trava.
Ele sorriu
e disse:
– Pena que não podemos substituir engrenagens que
travam na nossa vida. Qual é a sua engrenagem?
Ela ficou
paralisada. Fora pega de surpresa.
O pai
recolheu o mecanismo de sua mão e a abraçou com ternura. Afastou-a um pouco e
olhou em seus olhos:
– Minha filha, você não desce aqui a não ser quando
está com problemas.
Ela fugiu
o olhar, tentando esconder a lágrima que brotava. O relojoeiro sorriu e disse:
– A solidão é muito amarga, não é, minha pequena
Daniela? Eu me acostumei com ela depois que sua mãe morreu. As engrenagens
sempre foram um alimento para minha alma e me dedicar a elas fez com que eu
esquecesse a tragédia. Mas sua solidão é diferente.
– Como pode saber? Você é um homem! Que pode saber
dos sentimentos de uma mulher?
– Minha filha, eu sei mais do que imagina. Sei que
você se mantém afastada dos rapazes que a galanteiam, como se tivesse medo
deles. E sei que maioria deles não vale um centavo. Mas mantém-se afastada das
moças também. Acompanhei algumas amizades de você com algumas garotas que
pareciam unha e carne que de repente se desfizeram a ponto de sequer se
olharem.
Daniela
ficou rubra. Percebeu o olhar tristonho por trás do sorriso do pai:
– Posso lhe fazer uma pergunta? Não vai ficar brava
comigo?
Ela
consentiu com um aceno de cabeça:
– Essas moças se afastaram de você porque declarou
seu amor por elas?
– Sim! – disse ela agora sob um choro intenso. E
agora não consigo nem chegar perto de uma! Isso se espalhou por toda a
vizinhança. Por que você não teve um filho?
– Eu gosto de você, Daniela, como é. Não posso lhe
transformar em homem, nem com ajuda de mil fadas azuis, mas posso ajudá-la de
alguma forma.
Falando
isso, retirou o lenço de cima de uma peça, revelando uma bailarina em tamanho
real.
Daniela
olhou para o objeto com espanto. Aproximou-se e tocou a face da boneca. O tato
lembrava o toque de pele, embora estivesse fria. Virou-se pra o pai e disse:
– Ela é linda, mas é uma máquina! Pai! Como pode
achar que eu me contentaria com um simulacro de gente?
Ela virou
as costas e, chorando, subiu correndo as escadas.
O mestre
relojoeiro cobriu novamente a boneca e voltou-se novamente para a bancada,
continuando o trabalho, refúgio de sua alma atormentada.
Daniela
chorou longamente em seu quarto. Não desceu para almoçar ou jantar, apesar da
insistência do pai a quem repelia com gritos e impropérios.
Teve
dificuldades para dormir. Vinha em sua mente seu pai e seu jeito carinhoso de
falar com ela e sua tentativa de resolver o problema dentro do universo que
conhecia. Sabia que as intenções dele eram as melhores possíveis, dentro do
universo que conhecia: engrenagens, cordas e parafusos. Lembrava também do
rosto delicado da boneca e da textura de sua pele. Se ela fosse uma mulher de
verdade, seria uma tentação para Daniela. Mas não era! Aos poucos o conflito
interno foi cedendo à curiosidade e ela levantou-se da cama, vestiu o robe, e
desceu até a oficina.
Descobriu
a boneca e ficou olhando para ela. Sem corda realmente não passava de um objeto
inanimado. Uma pergunta passou por sua cabeça: quão detalhista teria sido seu
pai? A pele fora realmente um trabalho de artista. E os detalhes anatômicos?
Despiu a boneca. Os seios estavam perfeitos. Tocou-os de leve. A pele macia e
lisa lhe deu prazer ser tocada. Retirou rapidamente a mão, como se fosse
queimar. Não queria se permitir ter prazer ante aquela entidade artificial. E
os outros detalhes? Um homem seria capaz de captar todas as sutilezas de uma
vagina? Pelo que conhecia dos homens, poucos sabiam realmente acariciar uma
como se devia. E pensar em seu pai como um desses homens lhe deu certo
desconforto. Homens pensam que suas mães são assexuadas e as meninas pensam o
mesmo sobre seus pais. Bom. Seu pai era homem e se ele tinha que fazer sexo,
que fosse com sensibilidade. Criou coragem e tocou a vulva da boneca. Macia, levemente úmida, Daniela sentiu como
se estivesse tocando a si mesma. A boneca abriu os olhos. Daniela se assustou.
Seu pai teria dado corda? A boneca sorriu e a moça afastou-se como se estivesse
diante de um monstro.
– Olá – disse a ginoide. – Você deve ser Daniela.
Sou Linda, a seu dispor.
Levantou-se
e fez uma mesura com gestos bem delicados. Daniela estava impressionada com o
grau de detalhamento: movimentos naturais, fala modulada, um sorriso leve e
gentil. Entretanto, disse:
– Ainda assim é uma máquina.
A boneca
olhou-a com ar interrogativo. Daniela ficou em silêncio observando aquela
mulher perfeita, na aparência, nos movimentos e na voz. Seu pai realmente tinha
sensibilidade. Provavelmente tinha tido várias amantes e todas muito especiais,
o que de certa forma, contrastava com a imagem de homem puro que ela fazia
dele.
– Beije-me – ordenou Daniela.
Linda
chegou perto e tocou-lhe os lábios com os seus. Daniela gostou do toque e a
boneca foi movimentando os lábios e introduzindo a língua em sua boca com muita
delicadeza. A língua era igualmente perfeita. As poucas mulheres que beijara
não tinham aquela delicadeza e aquele gosto. Estaria cedendo? Daniela empurrou
a boneca para longe, derrubando-a no chão. Ela gritou:
– Você me machucou!
Daniela
respondeu brutamente:
– Como posso machucá-la? Você não tem pele, só uma
seda muito bem trabalhada, seus músculos devem ser cordas de piano e seu
coração deve ser uma mola de relógio!
– Sinto dor, sim! Seu pai me deu sensibilidade! Eu
sou gente!
Linda
começou a chorar. Que programa seria aquele? Tudo que Daniela sabia de
mecanismos era que, por mais sofisticados que fossem, seguiam sempre um padrão.
Seu pai conhecia tanto assim do comportamento humano a ponto de programar todas
as reações daquela boneca?
– Daniela!
Ela virou
o rosto. Era seu pai lhe chamando,
aproximando-se lentamente.
– Vejo que veio ver Linda. E então?
A moça
olhou o homem e correu abraçá-lo. Em prantos, disse:
– Oh papai! Muito obrigado pelo seu esforço! Mas...
Ela baixou
os olhos. O pai concluiu:
– … é uma máquina. Eu entendo
você, minha criança! Mas pense bem... O que somos nós para Deus? Apenas
máquinas para o seu prazer.
– Mas temos o livre arbítrio, não temos?
– E quem disse que ela não tem? Eu criei essa máquina
a partir do relógio astrológico. Seu coração é um relógio que calcula um mapa
astral hipotético minuto a minuto, gerando um comportamento extremamente
complexo.
Steampunk corset by Nola Yergen - foto publica originalmente por David Rogers |
Daniela
pensou um pouco e perguntou:
– Mesmo um relógio extremamente complexo é
previsível e nós, mesmo para um astrólogo extremamente hábil, somos
imprevisíveis.
– Mas eu dei a ela o livre arbítrio! Do mesmo modo
que acho que Deus fez conosco. Ele deve ter introduzido um elemento de
instabilidade no nosso caráter. Então coloquei uma peça formada por uma lâmina
bimetálica com dois metais de coeficiente de dilatação bem diferentes e que se
flexiona conforme a temperatura ambiente, gerando variação no mecanismo que nem
eu mesmo, com todos os cálculos que sou capaz de fazer, posso prever.
Aí estava
o prazer do pai. Sentia-se um deus diante dos brinquedos que criava. Linda era
sua obra prima, uma mulher artificial.
– Pai, eu não entendo! Se ela é tão boa, por que não
a tomou para si mesmo? O senhor está sem uma mulher há muito tempo!
Ele
acariciou a cabeça de sua filha e disse:
– Eu só não tenho uma mulher dentro desta casa. De
qualquer forma, Linda é como se fosse minha filha, e eu não teria coragem de
tocá-la como mulher.
– Mas ela não seria minha irmã?
– Sim e não. Como você se sente em relação a ela?
– Ela ainda é um objeto para mim.
– E se fosse uma pessoa? Seria sua irmã?
– Não, porque não a vi crescer. Mas, e você, não nos
vê como irmãs?
– O meu objetivo, desde que soube que você não
poderia se relacionar com homens, foi criar uma companheira para você. E quem
quebra um tabu, pode quebrar dois. Então, permitirei que vocês duas se
relacionem, mesmo sendo duas mulheres e sendo meio-irmãs.
Daniela
olhou o pai e o abraçou com força. O homem sorriu e disse:
– Leve-a
pra seu quarto. Vocês precisam se conhecer melhor. E talvez descobrir algo que
precisa ser ajustado no programa de Linda. Consultei várias de minhas... Minhas...
amigas para dar-lhe uma personalidade feminina. Na parte da sexualidade, eu
deixei muita coisa para ser aprendida, já que sou homem e olho outra mulher
como homem e não saberia dizer como uma mulher deseja outra mulher. Então, caprichei
no programa de aprendizado.
Daniela
beijou a testa do pai lhe agradeceu. Levou a boneca para o quarto, colocando-a
sentada na cama. A relutância em tocá-la ainda estava presente. Tentou começar
um diálogo, mas falava sem parar, como se quisesse que a boneca não lhe
respondesse. Linda colocou o dedo indicador sobre os lábios de Daniela pedindo
silêncio. A moça calou-se e respirou fundo. Olhou primeiro o rosto de Linda,
depois o peito. O movimento respiratório da boneca era idêntico ao seu e a moça
teve a impressão de ver um coração batendo.
Linda
tirou o robe de Daniela com delicadeza. Os dedos eram leves, palma da mão
suave. Beijou levemente seu pescoço, descendo aos poucos até seus seios.
Mordiscou levemente o mamilo e Daniela respirou um pouco mais forte. Linda
sorriu e beijou o outro seio, sugando-o levemente. A respiração das duas
começou a entrar em sincronia, alternando o inspirar de uma como expiração de
outra, num vaivém que prenunciava grandes prazeres.
A boneca
continuou, beijando-lhe o ventre. Daniela estava com os olhos fechados sentindo
cada toque de Linda, imaginando o que ela precisaria aprender. Quando ela tocou
com seus lábios a sua parte mais íntima, a moça soube que quem tinha que
aprender era ela.
Os dias
que se seguiram foram para Linda se adaptar à sua própria existência e uma à
outra. Daniela, ainda de vez em quando, tinha crises de raiva ao lembrar que
Linda era um ser artificial. Mas essa impressão foi aos poucos sendo desfeita e
esses momentos foram rareando.
Um dia, o
pai disse a Daniela:
– Está na hora de colocarmos esta moça na sociedade.
Tem um baile que vai ocorrer esta semana e seria um bom momento de mostrá-la.
Você a apresentará como sua prima.
– Mas pai, teremos que dançar com rapazes!
– Ora, querida, você sempre encarou a dança como uma
atividade prazerosa e sempre soube manter os rapazes longe de avanços
inconvenientes.
– Mas e ela? Eu sei que não gosto de rapazes, mas
ela nunca teve essa experiência.
– Está com ciúmes? Isso é ótimo! Há algumas semanas você
queria transformá-la em sucata! Mas, como em qualquer relacionamento, é um
risco que terá que correr.
– Mas, e o programa? Não dá pra dar uma
reforçadinha?
– Agora ela ser programável é importante? Não
pretendo alterar uma vírgula na programação original, já que ela está
funcionando perfeitamente. Eu escolhi um mapa astral em que a sinastria de
vocês duas era muito harmônica, de modo que ela nasceu apaixonada por você. O
risco vamos dizer que é baixo, mas existe e você terá que enfrentá-lo.
Linda, que
estava em silêncio até então, se manifestou:
– Daniela, eu amo você muito! Não é qualquer
barbudinho que vai me levar embora!
A moça riu
e disse:
– E um imberbe?
– Ele teria que ter cara de menina e vestir saia!
Mas, senhor Gepeto, eu preciso de uma alteração no programa: eu não sei dançar!
– Não me chame nem de senhor, nem de Gepeto. E eu
não fiz o programa, por que eu não sei dançar também. Mas você tem um programa
de aprendizado e Daniela pode ensiná-la. Ao dançar uma única vez, você dançará
bem dali pra frente.
– Linda, eu gostaria de fazer isso no próprio baile!
Sempre fantasiei um dia estar dançando com outra mulher num baile! Desta vez
teria uma desculpa fazê-lo!
* * *
A
orquestra tocava uma valsa vienense. Outra de Strauss Jr. Daniela às vezes se
perguntava por que não se tocavam outros autores ou outro gênero de música.
Linda dava demonstração de ansiedade. Seria fruto de algum programa ou era uma
característica própria da moça? Daniela sorriu. Hoje, mais do que nunca, isso
pouco importava. Deixou rolar a primeira música e depois tomou Linda nos
braços, como se fosse o cavalheiro. Como nada ainda tinha sido programado,
Linda assumiu um jeito mecânico, mas logo conseguiu se flexibilizar e, em pouco
tempo, as duas dançavam divinamente. Quando pararam, perceberam que estavam
dançando sozinhas e os outros casais em sua volta olhando. Alguns olhares eram
de desaprovação, outros de susto, outros de admiração. Um único olhar de raiva,
de Roberto. Um rapaz quebrou o gelo, batendo palmas.
O baile
seguiu normalmente, as duas dançavam ora com um ora com outro rapaz e, de vez
em quando, arriscavam mais uma provocação, dançando uma com a outra, trocando
de papel durante dança. Com certeza sairiam mal faladas de lá. O pai, sentado
em uma das mesas, dava olhares cúmplices para as duas.
As coisas
iam bem, até que Linda, numa das danças com Daniela, disse em seu ouvido:
– Precisamos ir embora. Minha corda está acabando.
Acho que dançar acelerou o processo.
Pararam a
dança e foram até a mesa do relojoeiro e informaram-lhe o fato. Os três saíram
apressadamente, e quando estavam próximos à porta, Roberto, visivelmente
embriagado, barrou-lhes a saída e gritou para Daniela:
– Você! Trocou-me por uma mulher!
Dizendo
isso puxou um revolver e apontou para a moça. Um tiro partiu. Linda rapidamente
se pôs na frente de Daniela. Ela caiu no chão e foi socorrida pelo
relojoeiro e, para sua própria admiração, o que manchava o vestido de Linda
era...
… sangue!
Alvaro Domingues -- 2013
Conto originalmente produzido para participar
da antologia Les Enchantées
Imagens obtidas na Web sem referencia de autoria.
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