O
soldado caminha pela mata. Posso sentir até o cheiro da floresta
tropical. Terra e grama molhada, como quando meu pai cuidava do
jardim. Ouço o ruído quase imperceptível de seus passos. Sinto a
sua apreensão. Um inimigo pode surgir de qualquer lado. A sua visão
periférica registra cada movimento suspeito das folhas. Pelo que eu
percebo ele sabe diferenciar o movimento natural do vento e dos
animais do dos humanos, por mais que os inimigos procurem os imitar.
Será
que ele tem algum sentimento além do estado de alerta? Percebo que
ele não tem medo, mas deseja sobreviver. Como todos nós. Quase
todos. Lembrei-me dos suicidas. Mas mesmo neles há ainda um fiapo de
vontade de viver onde um bom negociador pode se agarrar e evitar a
morte.
Na
semana passada, eu fui um negociador. E fui também o suicida que ele
devia salvar. Normalmente eles não permitem trocar de mente na mesma
seção, mas eu obtive esta permissão com muito custo. Influência,
troca de favores e dinheiro. Descobri que a permissão não passava
de um papel escrito e que uma vez na mente de alguém, eu saía do
controle deles. O manual de instruções, cheio de pode e não
pode, era uma ficção. Mas não vou deixar que eles percebam que eu
descobri isso. Se não eles não permitiriam que eu estivesse aqui
hoje. Principalmente pelo que pretendo fazer.
Percebo
que eu estou dispersando e deixo de prestar atenção no meu soldado.
Meu? Sim. Sem questionamentos filosóficos por favor. No momento ele
é meu veículo. Mas ele também é o motorista dele. Sou apenas um
passageiro a espera de algo diferente. Do que vim buscar aqui.
Eu
quero experimentar a morte. Não, isso não é proibido. Muita gente
faz isso. Basta assinar um termo de responsabilidade para tirar o
deles da reta. Foi por isso que escolhi o suicida. Queria sentir a
sua queda ao pular do edifício e o encontro com a morte logo em
seguida. Mas também queira sentir o que as testemunhas, ávidas por
sangue, pesavam. Os familiares do suicida. E o negociador. Pena que
ele era muito bom.
Não
sei por quanto tempo ele andará pela mata em busca de seu objetivo.
Nem de que lado da guerra ele está. Procuro perceber através do
olhos dele alguma coisa em seu uniforme que permita reconhecer pelo
menos se ele é um dos nossos ou do inimigo. Nada. Ri desta dúvida.
É claro que é um dos nossos, do contrário nosso governo teria uma
arma poderosíssima, permitindo olhar dentro da mente dos generais
inimigos e logo ganharíamos a guerra.
Lembrei-me
do negociador. E do suicida. E das informações privilegiadas. O
negociador talvez não fosse tão bom assim. Ele podia ter entrado na
mente do suicida antes, conhecido suas motivações e apertado os
botões certos. Eu estive na mente dele. Parecia que ele seguia um
roteiro.
Eu
quero experimentar a morte. Pedi um soldado na linha de frente, com
grande possibilidades de morrer. Talvez por isso é provável que eu
esteja na pele de um inimigo. Para todos nós, nossos soldados não
morrem. Quem morre são os outros. Escondemos as lágrimas das mães,
filhos e viúvas.
Voltei
a pensar nas informações privilegiadas. O governo e seus cidadãos.
É desejo de todo governo manter controle sobre seus cidadãos. Se
não podemos vigiar o inimigo, podemos vigiar a nós mesmos. Melhor,
alguns de nós podem vigiar outros de nós.
Estou
dispersando de novo. Não quero pensar sobre isso agora, do contrário
não aproveitarei minha experiência. Mas meu soldado só anda e não
disparou um tiro sequer. Talvez eu devesse ir mais fundo na mente
dele. Um dos “não pode”. Saí da superfície e desci um pouco
mais. Seus pensamentos periféricos, além da preocupação com a
sobrevida. Talvez descubra de que lado ele está.
Na
guerra, além das facções, há uma outra divisão: vítimas e
heróis. A qual deles será que ele fará parte? Me parece mesquinho
pensar apenas em usufruir de uma experiência de um soldado em vez de
me preocupar com a luta e seu resultado para o meu país. Foda-se. Um
amigo me disse que mantinham a guerra por razões econômicas e para
dar um circo para o povo. Ninguém mais acreditava no futebol. O povo
cansou das armações e do teatro. Na guerra, pensamos, o interesse
do país é ganhar e, portanto sem manipulações. Ledo engano, dizia
meu amigo. O nosso governo manipula os resultados. O que o nosso
inimigo também faz. Eu acreditei nele. Daí não faz sentido
pesquisar a mente dos generais em busca de estratégias de vitória.
Estamos jogando para empatar.
Eu
sabia que não devia me distrair. Enquanto fiquei filosofando, não
percebi que o soldado conseguira chegar uma estrada e caminhava em
direção às luzes de uma cidade. Achei um pouco estranho. Pela
quantidade de luzes que ele via adiante, a cidade era relativamente
grande. Mas, por que a surpresa? Vivíamos em cidades fortificadas,
encravadas em locais improváveis. Desertos, ilhas, montanhas e,
também, matas tropicais.
Meu
soldado ainda está caminhado. Começo as sentir seu cansaço e
também sua determinação em alcançar um objetivo. Talvez seu
quartel, o mais provável, já que passara facilmente pela entrada
fortificada da cidade. Se assim for, eu pedirei o meu dinheiro de
volta. Prefiro pensar que ele é corajoso ou burro e seu destino, uma
fortificação inimiga que ele quer destruir sozinho. Seus
companheiros? Talvez mortos em emboscadas e ele deseje cegamente uma
vingança. Improvável. Devo ter visto muitos filmes de ação
estrelados por brutucus. Percebo apenas determinação. Estará
apenas executando cegamente uma ordem? Se ele quer tanto chegar a seu
destino, por que diabos ele não pede uma carona aos carros que
buzinam pra ele no meio da rua?
Um
soldado em trajes de campanha no meio da rua foge muito à
normalidade, mesmo em tempo de guerra, mas as pessoas não percebem o
absurdo. Apenas buzinam pra ele dar passagem e sair do caminho. Têm
pressa em voltar pra casa pra dormir e no dia seguinte ir mais um dia
morno em seus empregos e nem vão lembrar disso. Um bando de
carneiros dominados.
Isso
me fez retomar minhas conjeturas sobre o do governo e sua relação
com esta tecnologia. Ele deve usá-la para monitorar uma parte da
população, lendo seus pensamentos. Alguns cidadãos influentes em
seu meio. Ricos, famosos e formadores de opinião. Talvez eu seja um
deles. Estariam eles me seguindo agora, monitorando meus pensamentos?
Talvez monitorassem também meu monitor. E o monitor de meu monitor.
Um fractal imenso de controle até chegar ao presidente, que seria
monitorado pela eminência parda.
Meu
soldado consegue visualizar o prédio. Ele está perto de seu
destino. Não é um quartel. É um prédio comercial. Ele entra pela
porta da frente, atira em todos no saguão. Finalmente alguma ação,
me regozijo. O prédio parece ser do nosso lado. Reconheço a
arquitetura de milhares de prédios iguais àquele. Talvez a
segurança interna se organize o mate. Ou venha a polícia. Ou nossas
tropas. Ele parece alheio a isso. Toma o elevador, escolhe um andar e
sobe. No andar de destino, procura uma porta. Entra. Há vários
técnicos com avental branco. Ele mata todos. E, em uma cama
hospitalar está alguém deitado, cercado de aparelhos. Ele olha o
rosto, como para conferir e prepara-se para atirar.
Finalmente
vou experimentar a morte.
Alvaro Domingues
imagem: editada a partir de
foto de domínio público