Escolhi o vestido entre outros. Poderia escolher qualquer um, do mais simples ao mais luxoso. Ninguém na loja se importaria qual eu levasse. Escolhi um muito bonito, mas não era o mais luxoso. Não tinha cauda. Tenho dificuldades em me movimentar com roupas deste tipo. Provei o vestido. Ele precisaria de pequenos ajustes, mas não havia uma costureira na loja e nem eu conhecia uma. E, embora tivesse habilidade com agulha e linha, não era este tipo de trabalho que eu sabia fazer. Bom os ajustes são pequenos demais e não é hora de me tornar perfeccionista. Não pude sê-lo em algo mais importante.
Imaginei as críticas. De um lado, amigas de minha mãe criticando minha falta de pudor em escolher o branco. Posso até ouvi-las falar: “depois de ter vivido em promiscuidade ainda ousa vestir branco”; “deve estar grávida, a despudorada” e comentários semelhantes. Bom, grávida eu não posso estar, a radiação que recebi no campo de batalha me tornou estéril. Sei que posso reverter isso, mas não quero. O mundo que sobrou não merece meu filho.
As outras críticas viriam das minhas “companheiras de luta”, por motivos opostos: “jamais imaginaria que você, que vestiu uniforme com camuflagem urbana e portou uma metralhadora, fosse capaz de vestir um símbolo da sociedade burguesa e machista.”
Não, eu escolhi branco não foi para chocar as beatas nem me render aos símbolos ideológicos da classe dominante. Eu escolhi branco e uma igreja para me sentir viva. A Igreja que ficou de pé depois do bombardeio. Uma construção em pedra de séculos. E o estranho que, mesmo que ninguém mais desejasse casar, o velho padre relutou em fazê-lo! Mas, ele me confessou: apegar-se a valores que ele viu morrer era o seu jeito de se sentir vivo.
Os convidados eu escolhi entre os sobreviventes. Nenhum parente. Nenhum amigo. A guerra foi cruel comigo. Por isso a parte que eu dispensei do ritual foi a entrega da noiva. Não para contestar nada, mas simplesmente por que meu pai morreu nos primeiros dias de batalha e hoje não sobrou ninguém em quem eu confiasse para representá-lo.
Estou entrando na igreja. Consegui até um organista, que restaurou o instrumento e se dispôs a tocar a marcha nupcial de Mendelson. Alguns convidados se deslumbram ao me ver. Para eles, represento vida, como sempre representei, já que eu os curo. Outros têm os olhos vazios marcados pela dor, olham e não me veem.
Meu noivo me espera no altar. Ele não guarda memórias das batalhas, por não as ter vivido. Aliás não guarda nenhuma memória além das que eu implantei. Talvez tenha alguma memória inconsciente ainda presente no cérebro que usei para montá-lo, ou memória celular em algum das partes dos cadáveres que escolhi. Mas isso não irá fazê-lo deixar de me amar.
Ao me ver ele sorri. Minhas habilidades de costura foram suficientes para deixar poucas cicatrizes no seu rosto, dando-lhe uma aparência muito bela.
Pedi para o padre omitir a frase “Até que a morte os separe”.
Alvaro Domingues
em 31/03/14
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