quarta-feira, abril 09, 2014

Liberdade é Escravidão



Passagem de Humaitá - Pedro Américo

Uma impressionante máquina de guerra percorria o pantanal, dirigindo-se ao Paraguai. Era um bólido gigantesco de uns cinco metros de altura, com a aparência de dois navios metálicos emborcados, espelhados um sobre o outro. Dois grupos de muitas rodas nas laterais serviriam para movê-la. Na dianteira, um limpa-trilhos enorme abria, não uma picada, mas uma verdadeira estrada para sua locomoção através das árvores. 

Nós céus o panorama era outro. O aeróstato  de  Madame Clessi interrompera no  meio do caminho sua viagem à Assunção no Paraguai. Talvez por ser temerário aparecer com um dirigível de tamanho descomunal na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, mesmo portando uma bandeira da França, neutra até então naquela guerra. Mas Clessi confiava na fama – boa e má – que a precedia e tinha certeza que Solano Lopes não ordenaria um tiro sequer naquela aeronave.  Lembranças de bailes de gala e de noites quentes na Europa viriam na mente do ditador e o desejo de conhecer a famosa dona de um circo aéreo só de mulheres – que na imaginação de todos era um bordel de luxo e luxúria inalcançáveis para maioria dos mortais – falaria mais alto. 
Clessi interrompera a viagem para poder receber uma mensagem, vindo pelo telegrafo sem fio, privilégio de algumas pessoas da corte do Imperador Dom Pedro II. 

Na saleta do telegrafo só ela e a oficial de comunicações, a Cigana Luzia, tinham acesso.

A oficial também era atiradora de facas, vidente e uma conselheira importante em assuntos estratégicos.

– Madame, a mensagem de Sua Majestade, o Imperador, foi bem clara: devemos esperá-lo aqui, pois o que ele tem a nos dizer não pode vir por mensageiros. 

Mas não foi preciso esperar muito. Em menos de meia hora o pequeno balão do imperador, leve e bem camuflado, estacionou no ar ao lado do navio aéreo de Madame Clessi. Algumas moças, membros da tripulação, ajudaram o ilustre passageiro a embarcar.

Clessi abandonou a sala e dirigiu-se à sua cabine particular. O Imperador sabia o caminho. Em poucos segundos ouviu um bater à porta e respondeu:

– Entre, querido. Para Vossa Majestade, a porta esta sempre aberta.

O Imperador entrou, sentou-se ao lado dela no divã almofadado, mas contra seu hábito, estava taciturno e em trajes oficiais, coisa que fazia quando a missão era oficial e grave.

– Quisera que esta visita fosse apenas uma cortesia. Mas ela é uma resposta à mensagem que você mesma mandou. E, como conheço você, sei que você está a caminho de Assunção para prevenir meu inimigo, Solano Lopes, do ataque traiçoeiro que os ingleses pretendem fazer através do território brasileiro.


Sim, era esta a sua intenção, desde que Isadora, uma de suas trapezistas,  lhe contara o que vira e o que ouvira da boca de um  tenente do exercito brasileiro com quem tivera um caso. O ingleses, a revelia do governo brasileiro, colocaram a caminho do Paraguai uma gigantesca Máquina de Guerra que faria a fortaleza de Humaitá parecer coisa de criança. 


Com o era seu dever de agente contratada pelo governo brasileiro, relatou via telegrafo tudo que Isadora lhe contara. E, pela sua consciência, sentiu que devia prevenir também o ditador paraguaio.

– E você, por acaso, veio me pedir para não fazer?

– Sim e não. Eu quero que em vez de ir falar com Solano, você destrua a máquina.


Solano Lopes

Clessi ficou boquiaberta e alguns segundo em completo silêncio. Dom Pedro quebrou o encanto:

– Você nunca se perguntou como uma maquina monstruosa daquelas passou despercebida por todos?

Clessi, ainda sob o efeito do choque, gaguejou:

– S-s-sim, eu me perguntei.

– Ela não passou despercebida. Nós pedimos para este inferno sobre rodas ser construído! E ele foi construído em solo brasileiro!

– Mas os ingleses são nossos inimigos! Eu acompanhei o rompimento de relações e tudo mais desde a Questão Christie.

O Imperador sorriu de maneira cínica, levantou-se, colocando as mão atrás das costas e começou a andar de um lado para outro, coisa que fazia quando alguém o pegava com a boca na botija.

– Estes não são quaisquer ingleses. Eles são um grupo especial, como vocês, que às vezes agem independentemente do seu governo. Sei que minha rival de saias, a Rainha Vitória, está apoiando Solano Lopes por baixo dos panos e este grupo via isto como uma grande imprudência, pois o ditador paraguaio é instável e poderá ser um poderoso inimigo da coroa britânica, principalmente se vencer o Brasil. Então eles me ofereceram esta arma. No papel a coisa pareceu interessante até que...

– Eu lhe contei o que era e o que eles pretendiam com ela.– interrompeu Clessi.

– Sim, minha querida. Eu não gosto muito do meu trono, mas não gostaria de ver um inglês sentado nele. Eu vim o mais rápido que pude para contatá-la e pedir uma forcinha para destruir tal bólido.

– Forcinha? Você sabe que nunca tivemos uma missão de tal monta. Por que não manda seu exército simplesmente destruir a arma?

– Bom isso poria a nu o plano dos ingleses dissidentes e minha aliança com eles. O governo inglês, que tem levado nossas relações inamistosas apenas no plano diplomático, não hesitaria em fazer um ataque frontal. Nós, já em guerra, teríamos que lutar em duas frentes, o que nos colocaria me sérios riscos.

– Entendo, mas isso não significa ainda que eu vou aceitar. Não creio que sejamos capazes de fazer isso sozinhas.

– Vocês não estarão sozinhas.

– Você, por acaso vai nos emprestar alguns soldados?

– Como disse não posso arriscar que os ingleses descubram.

– E o que vamos fazer? Nunca pegamos em armas pesadas e não temos competência para sabotar uma máquina daquele tamanho!

– Os soldados não podem se aproximar sem serem percebidos, mas um grupo de revoltados pode.

– Como?!

– Na realidade, eu não vou lhe dar nada, mas você pode contatar a um dos inimigos do Império.

– Você está ficando cada vez mais estranho, Imperador! Que inimigo?

– Os escravos luditas! Se você os convencer que a máquina é um risco para eles, eles a destruirão  com prazer!




Clessi sabia muito bem quem eram os escravos luditas. Era um dos paradoxos bem próprios do Brasil, que tinha um imperador republicano, escravocrata e abolicionista, tudo ao mesmo tempo. Uma das medidas do governo para ajudar na libertação dos escravos foi permitir a fazendeiros que lhes dessem alforria a compra de máquinas agrícolas subsidiadas. Mas os fazendeiros libertavam os escravos e os punham na rua, sem condições de sobrevivência, transformando-os, na melhor das hipóteses, em mendigos, uma situação muito pior do que ser escravo. Eles dirigiram seu ódio às máquinas, destruindo qualquer uma, de colhedeiras a locomotivas e até máquinas de costura. O governo cessara o incentivo, escravos pararam de ser jogados na rua, mas os luditas permaneceram. E estavam quietos já fazia alguns meses.
Clessi sabia que o Imperador não dava ponto sem nó. Com certeza ele queira que alguém de sua trupe se infiltrasse e, depois da tarefa feita, entregasse informações. Mas ela não perdeu tempo. Aproximou-se do imperador e acarinhando-lhe a barba, indagou:

– E o que o nobre Dom Pedro II vai dar em troca aos luditas?

O Imperador recuou, afastando a mão que lhe fazia cafuné e retrucou:

– Como assim, em troca? Um punhado de parafusos?

– O perdão real seria uma boa pedida.

– Não sei não...

– Ora, Pedrinho! Eu preferia tê-los ao meu lado que contra mim!

O jogo continuou por cerca de meia hora, até que Dom Pedro capitulou:

– Bem, Madame, que assim seja feito! Dar-lhes-ei o perdão, desde que abandonem suas atividades anarquistas.

– Seria bom mudar a lei para obrigar os senhores a pagarem uma indenização a seus ex-escravos e Império se tornar responsável pela realocação deles.

– Madame, a senhora sabe negociar!

– Resquícios de minha antiga profissão.

– Feito. Mas o primeiro que quebrar uma única máquina de costura vai pra cadeia!


* * *


Um carroção cigano, puxado por uma parelha de cavalos, rodava na periferia de São Paulo.  Não era o melhor veículo para andar por ali nas estradas precárias, sinuosas e com subidas e descidas íngremes e, naquela hora da noite, escuras e desertas. A mata em volta completava o aspecto sombrio. 

Alguns olhos, protegidos pelo mato denso, acompanhavam o trajeto da carroça. Eram dois homens negros, atléticos, jovens. Um deles portava um binóculo de teatro e tentava focar o carroção e disse:

– Deu pra ver. É uma mulher na boleia.

O outro tentou arrancar o binóculo da mão do primeiro, dizendo:

– Presa fácil. Deixa eu ver, Lumumba!

– Não Gahiji, você só de ver um pedaço de saia já se descontrola!

Lumumba continuou olhando e, após algum tempo, ponderou:

–  É um carroção cigano. Ciganos nunca estão sozinhos!

– Tá com medo? O grande Lumumba com medo! 

– Não seja bobo! Viu algum cigano por aí ultimamente? Ou ela tá perdida ou não é uma cigana.

– Então, vamos atacar de qualquer jeito!  – disse Gahiji, levantando-se e pegando uma espingarda que estava a seu lado.

Lumumba conteve o amigo:

– Não. Eu quero saber quem ela é e o que está fazendo por aqui.

– Depois eu é que não posso ver um rabo de saia...

Lumumba balançou a cabeça em desaprovação, mas não falou nada, apenas fez um gesto indicando para moverem-se em silêncio.

Era Luzia que estava ali, pronta para ser abordada por ladrões de estrada. Naquele trecho segundo as informações de Madame, a maioria dos assaltantes eram escravos luditas, que roubavam para financiar seu movimento. Uma mulher sozinha na estrada corria outros riscos além do simples roubo. Mas, se as informações fossem corretas, os luditas eram gentlemans, já que pretendiam deixar claro que seu ódio era apenas contra as máquinas e não contra as pessoas. E se não fossem, eles sentiriam a precisão de seu arremesso de faca.

Agora era a oportunidade dela verificar a veracidade destas informações. Dois homens estavam no seu caminho, barrando a estrada. Um deles estava com um rifle, segurado junto ao corpo, sem apontar, mas com o dedo próximo ao gatilho. O outro estava com os braços na cintura e com o queixo ligeiramente levando dando a impressão que tentava intimidá-la. 

Luzia estava com um grande xale colorido que escondia sua mão esquerda e uma faca. Um das vantagens de ser canhota. A mão direita segurava as rédias da parelha. Com um ligeiro toque parou os cavalos. Não eram assaltantes segundo sua avaliação. Assaltantes não esperavam, iam direto ao assunto, atirando e depois perguntando. Além disso ambos estavam vestidos como se prestes a ir a um baile, vestidos como dândis, calças brancas (sujas pela poeira vermelha da estrada), colete, camisas brancas de manga longa e uma gravata. A ausência do paletó era justificável pelo calor, mas ambos estavam de gravatas. O que mais a surpreendeu foram as botas, impecavelmente lustradas, apesar das condições do lugar. Luzia sabia porquê: botas eram o símbolo da liberdade e os ex-escravos faziam questão de ostentá-las, já que em seu tempo de escravo só podiam andar descalços.




Eles provavelmente eram os luditas. O desarmado se aproximou, fazendo uma mesura:

– Meu nome é Lumumba e o do meu companheiro de luta é Gahiji. Desculpe o mau jeito de abordá-la assim, mas achamos que a senhora compreenderá. Estamos requisitando seus pertences para ajudar nossa causa.

Luzia sorriu e respondeu:

– Eu quero sim ajudar sua causa, mas não com meus pertences.

Lumumba arregalou os olhos e perguntou:

– A senhorita por acaso quer se juntar ao nosso movimento?

– Talvez. Mas hoje eu apenas quero lhes dar um alvo.

Lumumba olhou espantado para ela e perguntou, admirado:

– Um alvo? Uma máquina a ser destruída?

– Sim, isso mesmo, mas não quero conversar aqui. Quero ir a seu acampamento.

Lumumba pensou um pouco e disse:

– Estou curioso. Você pode ir conosco ao nosso acampamento.

– Os senhores andarão à pé? Não me sinto confortável. Convido-os a virem comigo no carroção. Como eu não sei o caminho, sugiro que eu e você fiquemos dentro do carroção e Gahiji nos dirija até o acampamento.

– Não tem medo de mim? Estaremos a sós num ambiente fechado.

– Eu conheço sua fama, Lumumba e ela diz que você é um gentleman. Além disso você está curioso demais pela minha proposta e não quer por tudo a perder.

Gahiji mais uma vez a fuzilou com o olhar. “Dele”, pensou Luzia, “não posso esperar cavalheirismo”.

Após uma curta viagem, o cocheiro improvisado parou o carroção numa clareira  e desceu da boleia, com a arma em punho. Lumumba desceu primeiro e a ajudou a cigana a descer os degraus da escadinha, com gentileza, sob o olhar fuzilante de Gahiji, uma mistura de ódio e desejo.  

Lumumba, num gesto cavalheiresco, deu o braço para Luzia que aceitou sorrindo a gentileza, viraram as costas para o outro ludita e caminharam alguns metros afastando-se do carroção.  Luzia escutou o gatilho sendo armado, largou o braço do cavalheiro e virou-se, dando de cara com ele  olhando para ela, com a espingarda apontada e o dedo no gatilho. 

Luzia baixou o xale, mostrando o decote do vestido, revelando um belo par de seios. Gahiji suspirou, relaxando, com que ele viu. Mas não teria relaxado se tivesse visto a mão esquerda de Luzia. A faca foi lançada bem próxima ao pescoço do ludita, atingindo uma árvore próxima. Gahiji ficou paralisado. Luzia riu e disse:

– Sou atiradora de facas e fui muito bem treinada para errar o alvo. E isso é bem mais difícil do que acertar onde eu quiser.

A seguir, retirou uma faixa de pano da cintura, revelando um cinturão com várias facas embainhadas. Então escutou vários cliques de armas sendo engatilhadas. 

Lumumba, que vinha logo atrás, ergueu a mão. Era quase palpável o relaxamento do estado de alerta dos homens escondidos na floresta. Então dirigiu-se a Gahiji:


– Você enlouqueceu?  Você sabe qual é a punição para esta insubordinação?
Gahiji, sem olhar no rosto do líder respondeu:

– O ostracismo, o degredo ou a morte.

– Não vou matá-lo. Eu deveria degredá-lo, então, mas você sabe que qualquer baixa, inclusive um degredado, é prejudicial para nós. Então deixarei à sua escolha: ostracismo ou degredo.

Gahiji levantou a cabeça, colocando-se numa postura mais ereta e disse com uma voz carregada de orgulho respondeu:

–  Não aceito a humilhação do ostracismo. Se a escolha fosse o ostracismo ou a morte, escolheria a morte.

Lumumba fitou o companheiro de luta nos olhos e disse:

– Você foi um companheiro valoroso até o dia de hoje. E, neste momento, mostrou coragem. E espero que um dia o juízo volte à sua cabeça. Portanto, você não receberá punição alguma. Porém, ao primeiro deslize, por menor que seja, eu vou matá-lo com minhas próprias mãos.

Gahiji não relaxou. Olhou Lumumba com desprezo, virou-lhe as costas e foi em direção à cigana, olhou para ela agora com mais um sentimento além do ódio e o desprezo. Ele agora tinha medo.

Lumumba fez um gesto e os demais luditas se aproximaram. O olhar de todos voltavam-se para ela, carregados de admiração e respeito.
Luzia olhou para Lumumba e perguntou:

– Não é perigoso mantê-lo no acampamento?

O líder dos luditas respondeu:

– Você tem que deixar os amigos próximos e os inimigos mais próximos ainda. 

– Eu não vou correr nenhum risco? Ele me odeia e me vê também como objeto de desejo. Se eu bobear, ele vai me estuprar e matar.

– Não creio que você vai bobear. De qualquer modo, agora você está sob a proteção da Liga dos Luditas Escravos. Qualquer um de nós, eu inclusive, que se aproximar de você com intenções escusas será morto imediatamente. Cada um de nós vigiará o outro e sempre haverá pelo menos um par de olhos em cima Gahiji, até você nos deixar.

– Isso é muito bom, mas ainda assim não confio nele e não só em relação à minha pessoa. Você pode ser morto ou ele sabotar a proposta que eu vim lhe trazer. E, se você for morto, ele poderá tomar o poder do grupo.

– Não sei se você percebeu, mas eu estava incluso no rol das pessoas que não podiam molestá-la. O mesmo acontecerá com ele ou quem venha a me suceder. Eu confio na autorregulagem do grupo.

– Autorregulagem? Não é um termo mecânico?

– É. O fato de destruirmos as máquinas não quer dizer que não sabemos como elas funcionam. Mas estou ansioso pela sua proposta. Iremos até o quilombo e poderemos conversar mais  à vontade.

– E onde está o quilombo?

– Perto mas você não vai saber onde é.

Enquanto Lumumba terminava a frase, uma venda foi colocada nos olhos de Luzia.

O caminho foi por uma trilha na floresta. Andaram por cerca de uma hora, mas Luzia imaginou que  deveriam estar bem próximos do ponto de partida e que tinham dados voltas e mais voltas para tentar enganá-la. Quando lhe tiram a venda, ela percebeu estar numa clareira e diante dela estava um muro alto de pau à pique. “O quilombo” – pensou a cigana.

Lumumba falou alguma coisa num idioma estranho. Houve uma resposta do outro lado e uma contra resposta deste. O portão abriu, revelando uma vila de casas e várias pessoas esperando, começando por guardas armados, com um uniforme cinza escuro que não se assemelhava nem aos uniformes da Aliança, nem aos dos paraguaios. Haviam vários gentlemans, vestido com trajes bem elegantes e alguns portavam até cartola. 

Havia mulheres com roupas que fariam inveja às damas da corte. Crianças brincavam na rua com pouca roupa ou nus, já que não tinham que seguir nenhuma convenção social. Haviam alguns homens brancos, alguns bem vestidos, alguns com roupas de trabalho.

Lumumba percebeu o olhar curioso de Luzia e disse:

– Você está bastante curiosa e já posso imaginar as perguntas, mas eu gostaria que você tivesse a iniciativa.

– Não se ofenda, mas por que vocês se vestem como a classe alta branca?

– Nós queremos deixar claro que somos civilizados aos olhos de vocês e não um bando de gente selvagem, como dizem.

– Mão me inclua no “vocês”. Lembrem-se que os ciganos são igualmente oprimidos. A outra pergunta é: quem, são os homens brancos?

– Bem no início queríamos só negros, mas pouco a pouco alguns brancos nos procuraram. Pessoa em situações como a nossa, onde as máquinas eram responsáveis por alguma desgraça, desde um filho atropelado por um trem, a perda de um emprego ou até um sujeito cuja mulher o traiu com o maquinista. Hoje, o único critério é o ódio às máquinas.

Luzia ficou em silêncio ouvindo as explicações de Lumumba até que ele finalmente a levou no que seria o prédio administrativo do Quilombo.

Neste local havia um salão com esteiras dispostas em círculo. Todas as esteiras estavam ocupadas por homens e mulheres, menos três, uma ao lado da outra. Lumumba ocupou o do meio e indicou o da sua esquerda para Luzia.
Percebeu que todos voltaram os olhos para o lugar vago, à direita de Lumumba. O líder se levantou e disse:

– O companheiro  Gahiji está temporariamente afastado do conselho. Os trabalhos desta sessão estão iniciados.

O líder, após encerrar os trabalhos ordinários, a apresentou ao grupo:

– Esta é Luzia, uma cigana que encontramos na estrada e que tem uma proposta para nós. Senhorita, levante-se e fale.




– Senhores e senhoras luditas. Neste exato instante o governo brasileiro está enviando uma máquina de guerra de dimensões imensas, uma fortaleza sobre rodas, em direção ao forte fluvial de Humaitá. Ela tem plena condição de destruí-lo. Venho aqui em nome do Imperador para pedir a vocês que destruam a máquina.

Um oh!  percorreu todos os “assentos” da assembleia e um dos membros questionou:

– Espere um pouco... eu entendi certo? O Imperador quer destruir algo que vai beneficiá-lo nesta guerra absurda?

– Isso mesmo. Esta máquina está agora sob controle dos ingleses. E, se continuar a existir, todos nós poderemos ser o próximo alvo. O Império, ou vocês, luditas. Os ingleses não hesitarão em massacrá-los, já que estão impedindo “o progresso”.

Outro membro, uma mulher, perguntou:

– Como podemos saber se está falando a verdade? Nada sabemos sobre você a não ser que é cigana e que Lumumba confia em você, mas nem todos aqui confiam em ciganos.

“Já veio o preconceito”, pensou Luzia e, tirando um papel de dentro de seu decote, disse:

– Aqui está meu salvo conduto que garante minha palavra.

A mulher que a interpelara resmungou:

– Um salvo conduto do imperador vale menos que titica de galinha por aqui ...
Luzia sorriu e retrucou:

– Não! Um salvo conduto de Madame Clessi. Ela, e somente ela, é quem abona minhas ações.

Um novo “oh” percorreu a sala.

Lumumba esperou o silêncio e disse:

– Creio que isto esgota qualquer dúvida. Luzia, continue a sua explanação.
Luzia contou em detalhes tudo o que sabia da máquina e sua posição aproximada e qual a possibilidade dos ingleses se voltarem contra o Império. 

O teor de sua descrição fez com que a plateia ficasse em suspense e nem se ouvia o respirar de cada um. Por fim um rapaz levantou a mão e perguntou:

– Realmente temos um interesse comum com Imperador. Mas tenho uma pergunta, de ordem prática: por que o Imperador quer destruir a máquina antes dela chegar a Humaitá? Parece burrice destruir um monstro bélico desses antes de colher seus benefícios e, até onde eu sei, o Imperador não é burro.

Luzia respondeu:

– É não é mesmo. A decisão de não destruir Humaitá é de Madame Clessi, que quer evitar a morte da população civil em massa.

O rapaz da plateia perguntou novamente:

– E o imperador? Aceitou esta postura?

– O Imperador nos dá total autonomia, mesmo sabendo que normalmente não faremos tudo o que ele quer e para ele é mais importante no momento parar os ingleses. Isso por que foi detetada uma mudança de rumo da máquina.

– E para onde ela está indo agora? – alguém perguntou, sem levantar a mão.

– Provavelmente para Assunção no Paraguai. E o Imperador não quer que os ingleses tomem o poder no Paraguai.

A plateia parecia ainda insatisfeita e outro rapaz perguntou:

– Por que não capturar a máquina?

– Porque segundo Imperador, ainda poderia haver uma retaliação inglesa, vinda do governo oficial. Por todas estas razões, ele prefere a destruição da máquina, a tomar o Paraguai facilmente.

Um comentário dito por alguém no meio das pessoas:

– Esse Imperador é mais ludita que a gente!

E alguém mais fez uma pergunta:

– E o que ganharemos em troca?

Luzia respondeu:

– O Imperador lhes dará o perdão em troca de vocês abandonarem as armas.

Outro perguntou:

– Que garantias teremos?

Luzia já esperava esta pergunta e disse:

– As mesmas que o Imperador terá de vocês fazerem o que foi proposto: a palavra dada e a confiança mútua.

Um burburinho percorreu o salão. E Lumumba aproveitou o momento para encerrar a falação e deu início à votação. Luzia esperava um resultado apertado, mas para sua surpresa, o resultado foi a aceitação da proposta por uma larga diferença.



 Após o salão se esvaziar, Luzia  aproveitou o momento e arguiu ao líder:

– Passou rápido de mais. Você pode me explicar por quê?

– A maioria de nós está cansado desta luta sem sentido. Percebemos que é mesma coisa tentar o curso de um rio. Pode ser até possível, mas o custo é enorme. Temos que mudar nosso foco. Destruir máquinas apenas retarda o processo. Precisamos lutar primeiro por nossa liberdade, mas mesmo isso é incerto. Creio que nossa luta durará séculos, pois mesmo livres, ainda continuaremos escravos. Os grilhões invisíveis são mais poderosos que os de ferro.

– Entendo. De certa forma as mulheres, mesmo sendo livres, somos na realidade escravas.

– Conheço o papel de Madame Clessi e seu circo aéreo. Quase toda a sua trupe é formada de mulheres fugindo de maridos, pais e patrões cruéis.

– É verdade. Eu lhe contei sobre minha origem. Não pedirei que fale da sua, mas eu tenho uma pergunta a lhe fazer. Responda só se achar conveniente.

– Então, faça.

– É sobre seu antigo braço direito, Gahiji.  

– O que tem ele?

– Você é ponderado, culto e inteligente. Ele é seu oposto: esquentado, ignorante e pode ser esperto, mas muito menos inteligente que você. Por que o escolheu como parceiro?

– Eu sou capaz de planejar um ataque, mas sou incapaz de puxar o gatilho. Para fazer uma revolução, é preciso os dois tipos de pessoa.

– Só que quando se deseja construir eles viram um incomodo. Como agora. Vocês estão a meses sem destruir uma máquina sequer. No máximo assaltam passantes. Gahiji está louco para entra em ação e você acha que ele não é o melhor homem para atacar a Máquina justamente por isso.
Lumumba não falou mais nada. Tirou do bolso o pano que servira de venda e disse:

– Tá na hora de levá-la de volta a seu carroção.

– Não precisa me vendar. Eu sei onde estamos.

– Como?

– Alguém que atira facas de olhos vendados precisamente deve ter algum senso de direção, não acha?

Lumumba sorriu e disse:

– Então vá sem a venda. Você terá dois acompanhantes armados com rifles que a levarão até seu carroção. Como sabe, ele está aqui bem perto. Volte amanhã ao raiar do sol para planejarmos o ataque.

O caminho foi feito em silêncio e não levou mais de dez minutos. A escuridão era amainada por archotes. Quando eles chegaram perto, Luzia reteve um dos archote e se despediu eles. Foi quando ela ouviu um tiro e um do rapazes que acompanhavam caiu o chão.

Instintivamente, Luzia procurou abrigo debaixo da carroça, esgueirando-se no chão. O outro rapaz, experiente nestas situações postou-se atrás do carroção e esperou o segundo tiro. Assim que ele veio, o rapaz virou-se e atirou. Um corpo cai das árvores e escutam a a movimentação do mato. O rapaz voltou-se a se esgueirar. Após algum tempo sem que nenhum tiro, cautelosamente saiu do esconderijo, com a arma a postos. Como não houve nenhuma reação, relaxou e, voltando-se para Luíza, disse:

– Dona, pode sair. Não há mais perigo.
A seguir foi até seu companheiro e verificou que ele estava realmente morto. Caminhou mais alguns metros em direção ao inimigo caído. Virou-o pra ver o rosto e disse:

– É um dos nossos!

Luzia aproximou-se e olhou  para o cadáver. Não lembrava dele. Mas a roupa era baste similar a de seu acompanhante. Falou então para seu guardacostas:

– Tem gente que não quer que tenhamos sucesso.

O rapaz olhou seriamente e respondeu:

– O grupo não era pequeno. No mínimo seis pessoas, pelo ruído nas árvores. Ele poderiam ter dado cabo de nós ou ter acertado a senhora com o primeiro tiro, se quisessem. Eles querem nos assustar.
A cigana pensou um pouco e disse:

– Engano seu. Eles me querem viva. Eles precisam de mim para saber a onde está a máquina. Desistiram do ataque, porque algum deles caiu em si da burrice que seria me sequestrar muito perto do acampamento. Daqui a pouco isso aqui estará cheio de companheiros seus armados até os dentes. E eu sei quem está por trás do ataque.

O guardacostas respirou fundo e disse:

– Gahiji!

Como Luzia havia previsto, um grupo de homens apareceu e os escoltou de volta.

Luzia foi levada a uma tenda que tinha uma mesa, com, alguns rolos de papéis e duas cadeiras. Lumumba estava sentado em uma delas e apontou a outra para a cigana. Luzia acomodou-se e foi dizendo:

– Você deve estar sabendo que fomos atacados e de quem suspeito.
Lumumba olhou sério e respondeu:

– Gahiji não é mais uma suspeita. É um fato. Ele montou um grupo de dissidentes e está agindo agora por conta própria. E seu objetivo não é destruir a máquina. Ele a quer para si e quer usá-la pra tomar o poder. Às vezes eu não acho que ele está tão errado assim.
Luzia pensou um pouco e respondeu:

– Amigo, talvez a sua libertação venha através da força das armas, mas agora não é momento. O Brasil é membro de  uma aliança que está em guerra com o Paraguai. Nossos aliados não tolerarão uma tomada do poder e reagirão. Os Ingleses esperam por um deslize qualquer pra nos invadir. Os Paraguaios aplaudirão, mas Solano Lopes não é alguém em quem se pode confiar.

– Pois bem. Só desta vez ajudarei o Imperador. Mas minha  exigência pra depor as armas mudou: só deporemos armas se ocorrer a libertação total dos escravos, com a garantia de uma vida digna.

– Levarei seu recado ao Imperador, embora não creia que ele aceite. Como homem ele até concorda, mas ele como governante, por convicção, submete tudo ao parlamento. E as forças maiores neste momento são conservadoras.

– Manterei minha palavra e, como o Imperador, submeterei a decisão novamente à minha comunidade. A maioria quer a paz, pois está cansada de  luta. Por ora seguiremos o plano inicial.
E, como se quisesse dar cabo logo daquilo, abriu um dos rolos sobre a mesa era um mapa do Pantanal. Apontou com o dedo uma determinada posição e disse:

– De acordo com você, a Máquina está aqui.
Luzia se aproximou um pouco mais e disse:

– Ela deve ter se movimentado. Está um pouco à frente, em direção à Assunção.

– Breve ela estará neste campo aberto aqui e se tornará mais vulnerável. Pretendo montar um grupo armado de uns cem homens e tomar de assalto a fortaleza sobre rodas. Pretendemos atacá-la durante à noite e assim que os guardas forem derrotados, colocaremos uma bomba em seu interior.

– Você é muito simplista! Este campo aberto está com soldados brasileiros à caminho de um dos campos de batalha. Se virem um ataque a seja lá o que for, vão reagir. E os ingleses não são bobos. Eles deve ter a sua própria escolta.

– E o que você sugere? 

–  Penso em algo mais simples. Algo com meu carroção e cinco ou seis de seus melhores homens.


* * *
A Máquina caminhava pela mata, rasgando a paisagem. Um grupo de infantaria seguia, pela verdadeira estrada feita pelo seu rastro. Na cabine de comando dois oficias e um piloto.  Um deles disse:

– Comandante Edward,  detetamos uma tropa brasileira acampada próximo daqui. Devem ser soldados vindos de São Paulo em direção a Humaitá.
Edward disse ao soldado:

– Avise a tropa e permita que eles se encontrem com seus colegas de farda.
Charle arregalou os olhos e manifestou suas preocupações:

– Mas... e a Máquina?

– Não se preocupe. O segredo não é mais necessário.

O acampamento de soldados brasileiros estava montado no centro de um clareira.  Algumas pequenas tendas para os soldados e uma maior para o comando. Ao redor, estavam acampadas as vivandeiras e os mascates. Entre as vivandeiras estavam prostitutas, costureiras, cozinheiras e um carroção cigano.

Luzia montara uma barraca e ficara à espera de clientes. Pensou que seria assediada, mas isso quase não ocorreu. A maioria dos soldados estava mesmo interessado em ler sua sorte. Queriam saber se morreriam ou não em combate,  como estavam suas famílias ou se venceriam a Guerra Grande. Luzia habilmente dava mensagens de esperança ambíguas e todos saiam satisfeitos de sua tenda.

Logo apareceram soldados que não eram do batalhão. Uma tropa com uniformes brasileiros impecáveis chegou e foi cumprimentando os colegas de farda. Luzia já suspeitava de serem eles a escolta da Máquina. Nenhum oficial entre eles. Depois de algum tempo de confraternização, um deles se dirigiu à sua tenda. Luzia estava sentada atrás de uma mesa redonda coberta até o chão com um pano com astros e estrelas desenhadas sobre um fundo azul marinho. No centro uma bola de cristal sobre um suporte de madeira

– Uma vidente? É a primeira que vejo entre as vivandeiras. – disse o soldado.

– Antes que você pense errado, só ofereço os serviços de vidência.

– Sossega, belezinha. Se estivesse a procura disso, já teria ido a outra barraca. Quero saber meu futuro. Mas, antes quero que leias meu passado. De acordo com teus acertos irei em frente. Do contrário não te pagarei.
O sotaque era fortemente sulino, o que afastava hipótese de ser um inglês disfarçado. Eles normalmente imitavam o sotaque do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Luzia respondeu ao soldado:

– Usarei a bola de cristal. Você deve ficar em silêncio.

– Uma cigana paulista! Tu não me enganas nadinha!

– SILÊNCIO! Você terá sua prova logo.

A cigana executou alguns gestos imitando algum ritual e começou a leitura.

– Vejo uma grande máquina. Você veio a acompanhando.
O soldado arregalou os olhos. E Luzia continuou:

– Há homens que não são brasileiros e estão no comando. Você os teme, mas confia neles e no sucesso da missão.

– E qual é a missão?

– Tomar de assalto Assunção.

O soldado teve um sobressalto. A partir dali, Luzia o tinha em suas mãos e passou a usar uma técnica milenar cigana, “a arte de falar sem dizer” e conduziu a conversa para que o próprio soldado dissesse as informações que precisava a respeito da máquina, principalmente como entrar, sem ser pela entrada principal. 

O rapaz então falou:

– Tu és fantástica, guria! E o meu futuro?

Luzia sorriu e disse:

– Você hoje não voltará pra seu posto. E vai dar graças por isso.

– COMO ASSIM!? – gritou o soldado, levantando-se abruptamente.
Mas logo caiu no chão ao receber um golpe na cabeça de um homem que estava às suas costas.

– Obrigado, Mahiri – disse Luzia ao jovem negro alto que desacordara o soldado.

– Vamos ter que prendê-lo. Me preocupa se notarem sua falta.

– Não se preocupe. Ele vai ser substituído.

– Por quem? Ele branco feito leite e ninguém de nós vai conseguir se passar por ele!

– Ninguém? E eu?

– A senhora é mulher! Tem cabelos compridos e... – disse Mahiri, visivelmente embaraçado.

– Seios? Ainda bem que notou! O cabelo a gente corta. E os seios podem ser ocultos se eu enfaixá-los.

– Você teria coragem de sacrificar seus cabelos tão bonitos?

– Os cabelos crescem, meu querido.


* * *

Um grupo de soldados satisfeitos e meio bêbados (alguns muito) retornava para junto da Máquina. Um som constante e grave que ele emitia dava a impressão da respiração de um grande animal. 

Luzia caminhava disfarçada entre os soldados. O rosto imberbe da maioria deles garantia seu anonimato e lhe dava uma sensação do desperdício de vidas humanas que uma guerra provocava. Quantos dali morreriam na explosão da máquina? Luzia esperava que fizessem uma bomba que evitasse  fragmentar o bólido, gerando o menor número de vítimas possível. Mas poderia confiar na habilidade e intenção deles? Na habilidade sim. Foram raros os ataques dos luditas que redundaram em alguma morte. E o ódio? Estaria realmente sob controle? Evitou pensar nisso e caminhou em silêncio.

Quando a tropa se aproximou da máquina, a cigana deu um jeito de esgueirar-se para um local seguro, onde pudesse observar o movimento do acampamento. Quando a fogueira se apagasse poderia sinalizar a seus companheiros para agirem. O sinal seria um archote agitado. Simples e perigoso. Precisava fazer isso sem ser vista pelo sentinela. Essa preocupação desapareceu, quando notou que o sentinela, assim que o acampamento silenciou, estendeu um cobertor no chão e pôs-se a dormir. 

Luzia sorriu. O rapaz talvez imaginasse que uma máquina daquele tamanho não precisasse de proteção alguma. Antes de dar o sinal, ela precisava descobrir como entrar no veículo. Ela esgueirou-se  observando à volta. O tamanho do bólido era descomunal e realmente assustador. Muitos exércitos se dispersariam só de vê-lo. Mas não os paraguaios. Tudo podia ser dito deles, menos que fossem covardes. Em nome de Solano Lopes enfrentariam o diabo no inferno. 

Suas observações levaram a uma porta na parte de trás do bólido, fechada por uma válvula de escotilha. Arriscaria abri-la? O que teria logo atrás? Outro sentinela? Esperava que não. Não queria usar sua faca, mesmo que fosse em um inglês, mas estava com ela nas mãos. Procurou girar a válvula lentamente para gerar o menor ruído possível, mas isso era inevitável. Ao destravar, um som metálico ecoou dentro da máquina. Luzia ficou em estado de alerta, mas não percebeu nenhuma reação, nem fora nem dentro do veículo. Abriu a porta e entrou. Sem sentinelas. O excesso de confiança era compartilhado pelos ingleses. 

Havia uma iluminação amarelada no interior da máquina, vindo de bulbos de vidro no teto. Lembrou-lhe a própria iluminação do circo de madame Clessi. Eram lâmpadas de Crookes, o que pressupunha um gerador de energia elétrica. Realmente, era tentador apoderar-se da máquina em vez de destruí-la. Porém sabia os motivos do Imperador e concordava com eles. Era perigoso demais, mesmo para a pessoa mais sensata, ter um poder tão grande nas mãos. 

Continuou andando vagarosamente em silêncio. Encontrou uma escada e subiu. Precisava descobrir onde estava a sala das máquinas, mas a escada a levou à cabine de comando. De onde ela estava podia ouvir dois homens discutindo, felizmente em português. Um dos interlocutores dizia:

– Então você quer a libertação dos escravos em troca da sua denúncia?

– Sim. E posso provar o que estou dizendo. Creio que pelo periscópio você consegue olhar em volta. Procure no centro do acampamento. Você verá uma carroça cigana. A moça que se faz passar por vidente é uma espiã. Capture-a e você terá a sua prova.

– Não creio que tenham sucesso nesta loucura de tentar nos destruir. A sua informação tem valor, mas não tal que justifique uma parceira tão grande no nosso futuro governo.

– Posso entregar a posição de todos os acampamentos luditas e dar o nome dos líderes.

“ Gahiji!” , pensou Luzia. A moça sentiu gana de jogar-lhe a faca mas se conteve e ficou observando apenas, na esperança de ouvir mais algum detalhe. Mas sentiu um cano encostar em suas costas e alguém sussurrando:

– Da próxima vez, verifique se o sentinela que parece dormir está mesmo dormindo.

Luzia ficou em silêncio e com as mão levantadas. O soldado retirou-lhe a faca e a fez andar, colocando-a na vista dos dois interlocutores.

– Comandante, olha o que eu achei nos espionando! – disse o sentinela.

Gahiji olhou espantado para ela e disse:

– Luzia! O que você fez com os seus cabelos?

E voltando-se para o comandante, disse:

– Viu? Não precisa mais de provas!

O inglês olhou para ela com raiva e disse ao soldado:

– Leve-a daqui! Ponha-a no calabouço!

Minutos depois ela estava na cela. Assim que seus captores viraram as costas, Luzia viu uma sombra se mover. Aos poucos um homem foi saindo das sombras e Luzia quase gritou:

–  Mahiri! Como fico contente em revê-lo.

O ludita respondeu:

– Os ingleses precisam aprender a colocar mais de um sentinela. Assim que o vimos subir em direção à porta, entramos logo atrás. E aqui está a chave da cela.

– Por que vocês vieram? Não cheguei a fazer o sinal!

– Por isso mesmo. Você demorou demais e decidimos ir atrás de você.

O homem abriu a porta da cela dizendo:

– Precisamos dar o fora daqui. Já colocamos a bomba!

Os três começaram a correr em direção a escada que os levaria à saída.
Quando estavam fora do campo perigoso, o ludita entregou à cigana um cinto com algumas facas, dizendo:

– Achei que gostaria disso.

Luzia ficou visivelmente feliz, mas logo a expressão de felicidade sumiu do seu rosto. Então ela perguntou:

– E os soldados? A explosão não vai matá-los?

Mahiri sorriu e respondeu:

– Do mesmo jeito que você foi treinada para não acertar sua faca, nós luditas formos treinados a sabotar sem matar.

– E por que corremos? 

– Para fugirmos dos soldados, antes que eles acordassem.

– Mas o oficial inglês e Gahiji e quem mais estiver na máquina morrerão.

– Só se estiverem na casa das máquinas. Não se preocupe com o calderista e o mecânico. Eles foram neutralizados e presos, longe da casa das máquinas. Prepara-se, a explosão já vai ocorrer.

Ouviu-se um estrondo forte e um jato de fogo saiu pelo escape de fumaça da Máquina. Gritos e correria foram ouvidos, de pessoas que fugiam ou tentavam apagar o incêndio

– Pronto! – disse Mahiri – Agora você pode voltar para casa. O telégrafo sem fio no carroção revelou-se ser muito útil. Contatei Madame e ela já está a caminho para resgatá-la. 

Luzia riu e falou:

– Bem que Lumumba me avisou. Os luditas não só destroem as máquinas. Aprendem com elas. Mas... se a destruição foi parcial, a máquina poderá ser reconstruída.

– Dificilmente. – respondeu Mahiri – Os ingleses certamente abandonarão a máquina aqui. O custo e o tempo de consertá-la não valeria a pena. Logo que todos deixarem, a desmontaremos peça por peça. Aço de qualidade vale uma fortuna no mercado negro.

– Mas e Gahiji e seu bando?

– Nós os enfrentaremos. De qualquer forma ele é suficientemente esperto para reconhecer que não é capaz de reconstruir a máquina. Ele vai para o desmanche, como nós. Será uma disputa por recursos, pura e simples.


* * *


O Imperador estava novamente no camarote de Madame Clessi. 

– Pedrinho, você veio aqui nos parabenizar pelo sucesso da missão? – perguntou ela.

– Sim e não. Gostei do resultado de porem os ingleses para correr, mas não gostei do desfecho em relação aos escravos luditas. Você sabe que não posso libertar os escravos agora.

– Pode sim, com uma penada só. Você tem medo de enfrentar os conservadores e perder o poder.

– Talvez. Mas em vez de você me livrar de um inimigo, o fortaleceu e ainda ajudou a criar um grupo militante mais radical.

– Querido, o grupo militante radical não estava nos meus planos. E de qualquer forma, cedo ou tarde eles surgiriam. Fortalecer Lumumba não estava nos meus planos também, mas adorei que isto aconteceu. Quem sabe com um problema maior você se resolve a libertar de vez os escravos.
Dom Pedro II ficou pensativo, mas Clessi o tirou deste estado, puxando-o pela mão e dando-lhe um beijo. O Imperador relaxou e ela sussurrou:

– Por que não tira esta barba? Você ficaria muito mais bonito sem ela.


Este conto estava destinado a antologia Guerra do Paraguai, da Editora Estronho. Como ela infelizmente não será lançada, resolvi publicá-lo aqui.
Também é uma continuação ao conto Máquina de Guerra, da antologia Erótica Steampunk publicado pela Editora Ornitorrinco. Alguns personagens se repetem, mas ambos os contos podem ser lidos de forma independente.
Madame Clessi é uma homenagem a um personagem de Nelson Rodrigues, da peça Vestido de Noiva.




Alvaro Domingues – 2012

quinta-feira, abril 03, 2014

A Noiva estava de branco


Escolhi o vestido entre outros. Poderia escolher qualquer um, do mais simples ao mais luxoso. Ninguém na loja se importaria qual eu levasse. Escolhi um muito bonito, mas não era o mais luxoso. Não tinha cauda. Tenho dificuldades em me movimentar com roupas deste tipo. Provei o vestido. Ele precisaria de pequenos ajustes, mas não havia uma costureira na loja e nem eu conhecia uma. E, embora tivesse habilidade com agulha e linha, não era este tipo de trabalho que eu sabia fazer. Bom os ajustes são pequenos demais e não é hora de me tornar perfeccionista. Não pude sê-lo em algo mais importante.

Imaginei as críticas. De um lado, amigas de minha mãe criticando minha falta de pudor em escolher o branco. Posso até ouvi-las falar: “depois de ter vivido em promiscuidade ainda ousa vestir branco”; “deve estar grávida, a despudorada” e comentários semelhantes. Bom, grávida eu não posso estar, a radiação que recebi no campo de batalha me tornou estéril. Sei que posso reverter isso, mas não quero. O mundo que sobrou não merece meu filho.

As outras críticas viriam das minhas “companheiras de luta”, por motivos opostos: “jamais imaginaria que você, que vestiu uniforme com camuflagem urbana e portou uma metralhadora, fosse capaz de vestir um símbolo da sociedade burguesa e machista.”

Não, eu escolhi branco não foi para chocar as beatas nem me render aos símbolos ideológicos da classe dominante. Eu escolhi branco e uma igreja para me sentir viva. A Igreja que ficou de pé depois do bombardeio. Uma construção em pedra de séculos. E o estranho que, mesmo que ninguém mais desejasse casar, o velho padre relutou em fazê-lo! Mas, ele me confessou: apegar-se a valores que ele viu morrer era o seu jeito de se sentir vivo. 

Os convidados eu escolhi entre os sobreviventes. Nenhum parente. Nenhum amigo. A guerra foi cruel comigo. Por isso a parte que eu dispensei do ritual foi a entrega da noiva. Não para contestar nada, mas simplesmente por que meu pai morreu nos primeiros dias de batalha e hoje não sobrou ninguém em quem eu confiasse para representá-lo.

Estou entrando na igreja. Consegui até um organista, que restaurou o instrumento e se dispôs a tocar a marcha nupcial de Mendelson. Alguns convidados se deslumbram ao me ver. Para eles, represento vida, como sempre representei, já que eu os curo. Outros têm os olhos vazios marcados pela dor, olham e não me veem.

Meu noivo me espera no altar. Ele não guarda memórias das batalhas, por não as ter vivido. Aliás não guarda nenhuma memória além das que eu implantei. Talvez tenha alguma memória inconsciente ainda presente no cérebro que usei para montá-lo, ou memória celular em algum das partes dos cadáveres que escolhi. Mas isso não irá fazê-lo deixar de me amar.


Ao me ver ele sorri. Minhas habilidades de costura foram suficientes para deixar poucas cicatrizes no seu rosto, dando-lhe uma aparência muito bela.

Pedi para o padre omitir a frase “Até que a morte os separe”.


Alvaro Domingues
em 31/03/14